quinta-feira, 22 de setembro de 2005

REPETIR O POEMA

Depois de A Alegria do Mal, de José Emílio-Nelson, a colecção Finita Melancolia, das Quasi Edições, brinda-nos com este excelente Repetir o Poema (1979-1999), da poeta Isabel de Sá. Sobre Isabel de Sá sabemos pouco, apenas o necessário, talvez mais do que o necessário. Já sobre a sua poesia não sabemos nada que não seja fruto do nosso olhar, dada a escassez de divulgação a que tem sido sujeita. As poucas referências que encontramos a esta obra, deixam-se levar, quase na totalidade, por aquilo que nos parece o pendor menos interessante destes e de quaisquer outros versos: a orientação sexual da autora. Ora, sem desprimor dos que insistem na patacoada de uma “escrita de orientação gay e lésbica”, como se isso fosse, por si só, elemento valorativo de uma obra, devo dizer, desde já, que não estou minimamente interessado em ler poesia à luz das tendências sexuais de quem a escreve. Até porque, no caso presente, essa orientação torna-se "explícita" em pouco mais do que num dos catorze livros que compõem este volume. Refiro-me a Em nome do corpo (1985), onde logo num dos poemas iniciais, Delicadeza, podemos ler o que se segue: «Com delicadeza ela beijava meus dedos. Nossos rostos tocaram-se numa intimidade adolescente. Os corpos abandonavam-se à perturbação, sem cansaço, em gestos repetidos. O poema aparecia tatuado na palma da mão» (159). Que nos sirva então a última imagem deste breve excerto para irmos ao cerne da questão: a relação poema-corpo. O que há de mais interessante nesta poesia é precisamente essa noção do corpo como lugar de rebentação e produção de imagens. Dividamos esta obra em três partes: 1.ª os livros compreendidos entre o inaugural Esquizo Frenia (1977-1978) e Nervura (1981); 2.ª de Em Nome do Corpo (1985) a O Avesso do Rosto (1989); 3.ª os três títulos finais, já todos da década de 1990 – Poetas Suicidas (1990), Erosão de Sentimentos (1994-1996) e O Brilho da Lama (1997-1998). Na primeira parte eu salientaria, deturpando o título do primeiro livro da autora, uma escrita de esquissos frenéticos. Nesses primeiros livros encontramos uma linguagem mormente imagética, à base de imagens sobrepostas (atentemo-nos na capa), por vezes (de)formadas, que têm no corpo, ao mesmo tempo, suporte e matriz. «O que existe ali / não é uma espécie de expressão, é a expressão» (p. 21). Esta intensidade expressiva dos poemas iniciais é talvez a característica mais atraente da poesia de Isabel de Sá, que cultiva o poema em prosa como em poucos casos na poesia portuguesa (lembro-me, assim de repente, de algum Al Berto, de Luis Miguel Nava e de uma certa Luiza Neto Jorge – a de Difícil Poema de Amor). Já na segunda parte, o discurso torna-se mais linear, a sintaxe e a semântica como que se abrem, tornam-se mais disponíveis para o leitor. Não há propriamente uma descomplexificação do discurso, mas há um tom mais reflexivo sobre essa relação entre a escrita e o corpo, o processo pelo qual o poema irrompe e evoca a infância, os abismos da memória, os outros, o passado, o presente, o real, o irreal: «Penso no poema onde a sobrevivência pela escrita é possível» (p. 187). No entanto: «Escrever é uma forma de abandono que não pertence à realidade, nem tem valor perante o caos da existência» (p. 205). É precisamente esse caos que está em foco na terceira parte, a que comporta os três últimos livros aqui representados. A prosa dá lugar ao verso, inventariam-se biografias de poetas suicidas, rastos do declínio, fotografa-se a ruína do mundo, desiste-se da morte, enterrando-a no poema, porque do outro lado da palavra as Imagens são bem mais terríveis e insuportáveis: «Imagens de seres humanos / bóiam nos rios como bonecos / de plástico. É A Vergonha / a toda a hora na televisão. / Os soldados abrem valas comuns, / as escavadoras levantam corpos / que se despedaçam. Não vão esquecer, / nunca mais dormirão como dantes. / O cheiro, os abutres / na berma da estrada a criança / só que ninguém vê. Deve ser / o fim do Mundo ou o princípio / de qualquer outra coisa» (p. 333).

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