quinta-feira, 3 de novembro de 2005

POEMAS DISPERSOS

Afinal as Poesias Completas, publicadas há cinco anos pela Assírio & Alvim, não estavam assim tão completas. Remedeia-se agora a ferida com a edição de alguns dispersos, ainda que completa não fique de todo a obra do bom, do bom, do bom O’ Neill. Nascido Sagitário no ano da graça de 1924, Alexandre O’Neill publicou o primeiro livro, A Ampola Miraculosa, nos Cadernos Surrealistas em 1949. A aventura surrealista, ainda que efémera, terá sido marcante, mas jamais determinante num poeta demasiado seu para ser dos outros. Aliás, surrealistas em Portugal nunca foram muitos. Como julgo já ter lido algures, talvez António Maria Lisboa e pouco mais. O surrealismo português foi mais dos poemas do que dos poetas. Avulso, quero dizer. O’Neill, que abandonou a escola num abrir e fechar de olhos, trouxe dela na carteira o sonho que viria a matrimoniar-se com o real. Disso nos dá conta, em prefácio, Vítor Silva Tavares: «a aventura surrealista «ortodoxa» de Alexandre O’Neill pouco mais dura que o amor de um estudante: máximo quatro anos». Fernando Cabral Martins, no posfácio, é igualmente esclarecedor: «O «neo» e o «sur» são prefixos que então, por vezes, se cruzam ou se trocam». Os prefixos de O’Neill, os que são só dele, são os dos grandes poetas - esses que tendo indo à escola resistem à tentação de se tornarem escolásticos. Assim, o sonho do «sur» mais o real do «neo» só podiam ser insuficientes para quem sempre riu da suficiência. A eles se junta, em profícua orgia, um desencanto muito próprio (absoluto na Feira Cabisbaixa), um talento para jogar com as palavras que vem do inicial Tempo de Fantasmas (1951) e se desdobra pelos poemários subsequentes, um olhar atento sobre o absurdo das coisas quotidianas, isto é, sobre o quotidiano das coisas absurdas. Tudo a desaguar nessa escrita lúcida, mesmo quando fanfarrona, paradoxal, ambígua, da «estranheza dos lugares comuns e [d]a abjecção do tempo comum» (Fernando Cabral Martins). Alexandre O’Neill é, de entre os maiores poetas portugueses do século XX, aquele que melhor soube encontrar o lugar de confluência do riso e da lágrima, do quotidiano e do intemporal, do local e do universal, da tradição e da vanguarda, do desespero e da esperança. Poeta totalíssimo, ele legou-nos uma obra que é um país. Anos 70 – poemas dispersos, confinando-se a uma década, permite-nos perceber tudo isso. O essencial dos poemas que compõem este volume provém das inspiradas colaborações do poeta em jornais como o Diário de Lisboa, A Capital, A Luta (incrível: houve jornais que, em tempos, publicavam poesia deste calibre!!!). Há ainda as participações na Antologia da Poesia Concreta em Portugal, organizada por José Alberto Marques e E. M. de Melo e Castro em 1973, mais alguns inéditos. Trata-se de um leque diversificado e desigual de poemas que, nunca atingindo a menoridade, nos confirmam ter sido/ser O’Neill o nosso poeta maior da menoridade. Poemas que são estórias, poemas que são crónicas, poemas que são gozo, poemas que são combate, poemas que são tudo isso sem se reduzirem a uma única dimensão disso. Poemas como este brevial (sic) SOLTEIRICE: «Espeta-te com o garfo. / Corta-te com a faca. / Deita-te no prato. / Espera» (p. 68). Resta dar conta da exímia organização do volume, a cargo de Maria Antónia Oliveira e de Fernando Cabral Martins, enriquecido com alguns desenhos de Luís Manuel Gaspar, um conjunto alargado de notas sobre a origem dos poemas, uma cronologia e os já referidos prefácio e posfácio.

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