sábado, 3 de dezembro de 2005

MALVA 62

O que é poesia? Quem quiser que arrisque. Eu não. Quando muito, poderia talvez contribuir para um ou outro sinónimo de poesia. Mas nesse caso a pergunta deveria ser: o que é a poesia? Eu diria, talvez, respiração. Dos possíveis sinónimos de poesia é aquele com que mais me identifico. Outros dirão resistência. Mas a resistência remete para tabelas que nem sempre fazem justiça à arte de resistir. Liberdade livre, pela voz de Ramos Rosa, faz sentido. No entanto, o próprio Ramos Rosa não resistiu à delimitação dessa liberdade. Não há liberdade sem regras, qualquer professor de escola primária o asseveraria. Ou então: os melhores músicos de jazz são os do free, ainda que por detrás do free se esconda toda uma escola. Mas como poderemos sabê-lo se nunca lhes escutarmos mais que o mero exercício da sua respiração? Por isso mesmo, são os melhores: tocam como respiram. Assim os poetas que poetam como respiram. Alguma da poesia de Daniel Maia-Pinto Rodrigues (Porto, 1960) desconcerta-nos precisamente por nos colocar perante estas dúvidas: 1.ª é isto poesia?; 2.ª o que é a poesia? Sublinho alguma por não poder ser esta, de todo, a digna representante do grau zero da poesia portuguesa. De resto, ainda está por inventar, que eu saiba, uma escala dos terramotos poéticos portugueses? Candidatos a Richter não faltam, eu sei. Mas não este que vos escreve. O Afastamento Está Ali Sentado, livro publicado em Abril de 2002 na colecção Finita Melancolia das Quasi Edições, reunia parte substancial do percurso poético de Daniel Maia-Pinto Rodrigues. No posfácio, Rosa Maria Martelo chamava a atenção para uma das dimensões, a mais interessante para mim, desta poesia: «uma espécie de versão urbana do poeta da natureza» (p. 132). Essa dimensão revela-se na recorrência a um léxico profícuo em faunas e floras (im)prováveis. Repare-se, desde logo, no título do mais recente. Este reaproveitamento da natureza remete-nos também para um imaginário feérico e efabulado, onde os bosques e as florestas dão espaço a um tempo que, sendo de agora, parece de outrora. «Tu és o bonito príncipe de ti» (p. 100). - é o poema que fecha Malva 62. Disse o poema e não me enganei. O subtítulo da obra agora dada à estampa (de novo pelas Quasi Edições) não engana: Poemas breves. Brevidade essa que, diga-se, resume-se em muitos casos a um ou dois versos. Aqui vislumbramos outro aspecto interessante desta poesia: o peso atribuído às palavras. Daniel Maia-Pinto Rodrigues opta por um registo onde as palavras respiram com leveza, como se a página fosse um espaço amplo onde qualquer palavra poderia, não fosse o trabalho do poeta, estar a mais. Entramos assim no território mais questionável duma poesia que ser quer mínima. É que muitos dos poemas que agora aparecem disseminados pelos quatro conjuntos de Malva 62 (Parou à Beira do Pomar, Predicados do Intermédio, Apontamentos do Cônsul Von Troche, Parou à Beira do Pomar/2) são meras citações de estrofes de poemas anteriores, recriações de poemas já antes publicados noutros livros, versos repetidos doutras paragens. Alguns exemplos (poucos, para não ser exaustivo): logo o primeiro poema de Parou à Beira do Pomar (sequência inicial deste Malva 62), não é mais do que a primeira estrofe de um outro poema que aparecia na sequência intitulada O Afastamento Está Ali Sentado (publicada em 2002): «Há um rio / ou um barco no rio / onde a luz é intensa / e de tanta luz nos olhos e água / com rigor se não sabe / se o barco vai vazio» (p. 11, confrontar com p. 123 de O Afastamento Está Ali Sentado). Noutros casos, como no poema O Meu Dia, Daniel Maia-Pinto Rodrigues limita-se a recriar duas estrofes de um poema antigo: «Andam de raposa / regougos pelo Bosque / e as toutinegras simulam sustos. // A tarde, todavia / decorre sem problemas / para os texugos» (p. 49). Em O Afastamento Está Ali Sentado (2002), o mesmo poema aparece assim na sequência O Diabo Tranquilo: «Andam-me de raposa / regougos pelo Bosque / enquanto as toutinegras / simulam sustos. // A tarde decorre sem problemas / para os texugos. // No meio do Bosque / há um casebre com alpendre. / Da janela sem vidro / o lobo repousa e vigia» (p. 93). As repetições, as rasuras, sucedem-se, num jogo de auto-citação que para o caso nos parece, mais do que dispensável, muito questionável nos seus eventuais intentos. Pegando no posfácio de Manuel António Pina, eu diria que neste caso se repete a desnecessidade da maior parte da poesia portuguesa de autores mais jovens. Até porque, pela singularidade inquestionável desta poesia, pelo humor transparente de alguns versos, este tipo de processo, mais pomposo que outra coisa qualquer, era de todo evitável. Fiquemo-nos então, antes que por falta de decoro mandemos o poeta às malvas, por esta tão breve quanto possível Abordagem: «Sejamos modernos, sejamos radicais. / Como bem sabes não somos eternos. / E além do mais eu não digo nada aos teus pais» (p. 73).

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