De José Miguel Silva (n. 1969) li: Ulisses Já Não Mora Aqui (2002) e Vista Para um Pátio seguido de Desordem (2003). Os restantes – O Sino de Areia (1999) e 24 de Março (2004) – escaparam-me, sobretudo porque nunca os encontrei, ou eles nunca me encontraram, onde é costume estes encontros terem lugar: nas livrarias. Movimentos no Escuro, publicado pela Relógio D’ Água em Novembro do ano transacto, é o quinto livro do autor. Incluído por Manuel de Freitas na famigerada antologia Poetas Sem Qualidades, José Miguel Silva pode ser considerado um desses autores a quem dificilmente escaparão os rótulos que fazem as graças de quem não logra ler poesia sem o "binóculo rotular". No que aos tiques do meio poético diz respeito, julgo particularmente irritantes a "paranóia da canonização" e a "esquizofrenia segregacionista". Sempre a arte se construiu, mormente a poesia, a partir do conflito entre a imaginação e a representação. Podemos falar de racionalistas e de empiristas, de surrealistas e de neo-realistas, de trágicos e de cómicos que isso não resolverá em nada aquilo a que o poema está, pela sua própria condição, limitado: ser a expressão de uma voz. A partir daqui importará somente entender a voz no contexto das suas motivações, entendê-la como perspectiva, procurar compreendê-la no imo dos seus intentos, evitando encontrar nela mais que a sua própria natureza. Não vale a pena misturar alhos com bugalhos. Um poema é o que é, tem o valor que tem, sempre no limite da sua circunstância. A avaliação que possamos fazer dele estará obviamente condicionada pelo gosto pessoal, mas não mais do que pela capacidade de nos deixarmos penetrar pelo universo do poema tanto quanto nos seja possível penetrá-lo. Note-se, a título de exemplo, na relação que os poemas de Movimentos no Escuro mantêm com a arte cinematográfica. Eles não são meras representações poéticas dos filmes visados, não procuram ser descritivos, mesmo quando parecem sê-lo, nem se deixam circunscrever por uma eventual perspectiva que o poeta tenha formulado a partir da experiência desses mesmos filmes. Estes poemas denotam, sublinhe-se o verbo, a relação do poeta com o seu mundo a partir duma espécie de fusão, mais do que apropriação, das imagens cinematográficas com as imagens poéticas. A minha vida dava um filme, dizemos por vezes. No caso presente, o filme alicerça já uma reflexão possível da nossa vida. É nesse sentido que o poeta arrisca a experiência de um filme como princípio de um universo imagético que lhe permitirá reflectir o seu presente. Veja-se como o poeta era «o rapaz de cabelo verde» do filme de Joseph Losey, ou como o seu pai podia ter sido o personagem central de Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, ou como é possível ser-se um soldado em Gudalcanal quando se escreve em sintonia com A Barreira Invisível, de Terrence Malick. Comparáveis com um mundo que é o nosso, os filmes que servem de pretexto a estes poemas funcionam como o magma metafórico dos próprios poemas. O tom geral é pessimista, por vezes irónico, assumidamente desesperado, desencantado. A linguagem é simples, servindo-se amiúde de expressões comuns (entre a espada e a parede, engolir em seco, entregar o ouro ao bandido, etc.) como sustento de uma clara inclinação aforística: «Não saber é antegosto / dos estetas e ferrete dos pequenos» (p. 28). O ambiente é quase sempre de uma constrição profunda, sendo alguns poemas absolutamente desoladores. É o caso de NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR – MANOEL DE OLIVEIRA (1990), que termina assim: «só quem aprendeu a amar a derrota, / a fazê-la sua, a lutar por ela, poderá desatrelar-se / do tandem de agonias que os antigos figuravam / sob o nome de temor e esperança» (p. 50). Outros são extraordinárias glosas do sentimento de culpa, da humanidade, do carreirismo político, do amor, da desesperança.
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