Elucidário de Youkali seguido de Ordem Alfabética, publicado em Janeiro do ano corrente pela Editorial Caminho, junta dois conjuntos de poemas brevíssimos de um poeta portuense cuja obra se tem dividido entre livros para crianças e os outros. Supostamente para adultos, este deslumbrante elucidário de João Pedro Mésseder (n. 1957), assim como o subsequente Ordem Alfabética, mostra-nos um poeta transformado em criança, ou seja, no seu devido lugar de criador absoluto de mundos imaginários. Só nesse lugar pode o poeta, julgo eu, exercer a sua suprema função: a reinvenção da linguagem a partir da reconstrução da palavra. Nos dois conjuntos de poemas aqui trazidos, esse trabalho é exercido de uma forma lúdica onde impressionam a precisão, a meticulosidade, bem ao jeito de alguma poesia oriental, a capacidade de síntese (muitos poemas possuem um único verso), a imaginação e uma graciosidade discursiva que dificilmente deixará de encantar mesmo o leitor mais exigente. Será talvez importante referir que essa capacidade de síntese consegue não resvalar num hermetismo tão metafórico quão facundo, apenas acessível a hermeneutas de doutoramento feito e aprovado com distinção. A parada aqui é distinta, podendo por vezes uma palavra aparecer transposta numa outra com a qual passa a estabelecer uma relação sinonímica facilmente reconhecível: «Blasfémia - Bofetada» (p. 20). Youkali, tal como aparece no poema de Roger Fernay transcrito no verso da capa e da contracapa deste elucidário de João Pedro Mésseder, «c’est le respect de tous les voeus échangés». Aquilo que se procura cambiar neste livro é o significado das palavras, buscando-se para isso outros sentidos construídos através de um jogo semântico com regras diversas. São novos significados que surdem de associações directas ou indirectas com os fonemas da palavra (re)construída, de conexões fonéticas mais ou menos evidentes, de brincadeiras sérias onde o que se depreende é um esforço hábil na desconstrução da palavra enquanto representação das coisas do mundo. Às vezes, o que parece estar em causa é apenas a distensão da linguagem poética: «Amar - Encher de água do mar / um coração vazio» (p. 15). Outras vezes, vislumbramos um humor marcado pela ironia política: «Crédito – Doença terminal / dos pobres» (p. 29). Mas é em Ordem Alfabética, conjunto que abre com três epígrafes de Luiza Neto Jorge, Octávio Paz e Roland Barthes, que a intenção subjacente a estes micropoemas é obviada. A citação de Barthes remete-nos para um dos mais fascinantes diálogos platónicos: Crátilo – Diálogo sobre a justeza dos nomes. Nesse diálogo, mantido entre Sócrates, Hermógenes e Crátilo, procura-se discutir a origem das palavras, se estas foram estabelecidas em conformidade com a natureza dos objectos ou se, por outro lado, resultam apenas de convenções. Ainda na fase inicial da investigação, quando interpelado por Hermógenes sobre a justeza natural dos nomes, Sócrates aconselha o seu interlocutor a «consultar Homero e os outros poetas». É essa crença na propriedade das palavras, na relação dos nomes com aquilo que nomeiam, que aqui é posta em causa. O que estes poemas de João Pedro Mésseder logram é fazer-nos acreditar no poder criativo da poesia, forma suprema do fazer da palavra. Estes poemas são o exercício mesmo desse fazer da palavra. E assim a palavra deixa de ser um absoluto em si, cristalizado nas definições dos dicionários, para poder passar a ser o interlocutor com o qual cada um constrói o mundo à sua volta e joga uma partida de xadrez.
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