sexta-feira, 9 de junho de 2006

OLHAR DE ULISSES

O Olhar de Ulisses (1994)

O Olhar de Ulisses
de Theo Angelopoulos

Em 1994, data da realização de O Olhar de Ulisses, Sarajevo entrava pelas nossas casas adentro como mais um exemplo de até onde pode chegar a depravação humana. Da capital da Bósnia-Herzegovina chegavam-nos imagens que voltavam a dar sentido à ideia de que a história nunca termina, ao mesmo tempo que actualizavam, com inquietante analogia, as memórias de uma chacina perpetrada havia 50 anos. Era impossível, à época, justificar o alheamento. Este filme, que não se cinge especificamente ao problema político dos Balcãs, acaba por reflectir essa mesma impossibilidade, questionando o sentido da arte num mundo onde tudo parece desmoronar. Harvey Keitel interpreta o papel de um realizador de cinema grego, tal como Angelopoulos, empenhado na recuperação de três rolos de filme dos irmãos Manakis (os primeiros filmes feitos na Grécia e nos Balcãs). Mais que um filme, o que se pretende recuperar é um olhar cativo, aparentemente perdido, mas que o cinema pode finalmente libertar. A viagem pessoal deste realizador vai servir para mostrar-nos uma região do mundo envolta em situações do mais abjecto miserabilismo. Da Grécia a Sarajevo, passando pela Albânia, Macedónia, etc., o que esta viagem nos ensina é a ruína em que se transformou o quotidiano da humanidade. Tudo mudou. Será possível, de alguma forma, recuperar as raízes? Recuperar o olhar original? Será possível, de alguma forma, retornar a essa casa de onde um dia partimos? A resposta está na epígrafe de Platão que inaugura o filme: «Também a alma, se quer reconhecer-se, deve olhar para outra alma». Por esta razão este filme espelha-nos, pois reflecte a mais essencial das tragédias humanas: tudo muda, nada é recuperável senão pelo artifício da arte. Uma arte que ainda é possível, embora sob um manto de nevoeiro a disfarçar a nossa presença. Parte do argumento de O Olhar de Ulisses deve-se a Tonino Guerra, o mesmo que escreveu para Tarkovsky o argumento de Nostalgia. No princípio deus criou a viagem, depois a dúvida e, por fim, a nostalgia. Se é difícil acreditar em deus num tempo assim, fácil é reconhecer essa mesma ordem no (re)conhecimento que alguém possa fazer de si mesmo. Porque o tempo exprime-se nos actos do homem. E a verdade dessa expressão vive no silêncio revelador daquilo que perdura, ainda que não seja a perenidade resultante de múltiplas formas de tratamento do passado o que poderá levantar da morte aquilo que se perdeu. O cinema é uma dessas formas. E é uma forma que obriga a um exame permanente da nossa condição. Esse exame consiste em olharmo-nos no passado, pondo em questão o presente. Harvey Keitel, neste filme, personifica esse tipo de retorno a si próprio que qualquer homem, mais tarde ou mais cedo, se obriga realizar. Buscando nas imagens originárias dos filmes dos irmãos Manakis um primeiro olhar, um olhar desaparecido, a inocência arruinada, ele vai redefinindo a sua existência. Logo no início da viagem, afirma: «No meu fim está o meu começo». É precisamente no encalço desse começo que ele se põe a caminho, em direcção a um fim que será, porventura, outra forma de começar.

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