sexta-feira, 16 de junho de 2006

SÉTIMO SELO

O Sétimo Selo
de Ingmar Bergman
Era uma vez um cavaleiro, Antonius Block de seu nome, que se encontrou com a morte ao regressar das Cruzadas. Desprevenido para o desfecho da vida, o cavaleiro propôs à morte um jogo de xadrez com a seguinte condição: viver enquanto o jogo durasse e continuar vivo caso saísse vencedor. À morte, bem sabemos, ninguém ganha. Quando muito, alguns a fintam. Disso sabia o cavaleiro, cuja intenção seria «obter o conhecimento» no compasso de espera que o jogo lhe proporcionasse. Estranhamente actual é a dúvida que assalta os rostos amedrontados das personagens deste filme, todas elas confluindo com o vazio que povoa o coração do cavaleiro Antonius Block: por onde anda Deus? No desenrolar da partida de xadrez entre a morte e o cavaleiro, o que Bergman nos propõe é uma das mais expressivas reflexões cinematográficas de sempre sobre a condição humana. Estreado em 1957, o filme decorre num tempo medieval marcado pela peste, pelas execuções, pelo medo da morte. O tom alegórico, raramente visível nos filmes do cineasta sueco, pode ser entendido como pretexto para uma expiação de carácter intimista, visando a demarcação dessa linha ténue que separa o medo humano da existência divina. Filho de um pastor luterano, Bergman pode aqui ser entendido como o cavaleiro que se interroga. Esse tom de interrogação permanente é apenas suspenso numa espécie de elogio à vida simples, representada no amor feliz de uma família de saltimbancos. A alegria dessa família contrasta com todo o resto: cadáveres putrefactos abandonados pelo chão, execuções de jovens raparigas na fogueira, procissões da palavra de Deus em regime de auto-flagelação, presbíteros corruptos. A Igreja não sai bem do quadro final, tracejada que foi com os marcadores da hipocrisia e da manipulação. Mas mais que o papel da Igreja nesta história, o que convém sublinhar é o lugar da morte na vida das personagens. É curioso que no final do filme só a família de saltimbancos escape à morte. Todos os outros, «o ferreiro e a Lisa, o cavaleiro e o Raval, Jöns e Skat», terminam dançando com a morte. Que pretenderá dizer-nos Bergman ao poupar os artistas? O contraste é evidente: mais do que os que procuram, são aqueles que criam quem encontra a sua paz. Não importa perguntar por Deus, importa praticá-lo, trazê-lo nos gestos de cada dia, representá-lo na alegria de viver. Religião e arte como que se interrelacionam nesta derradeira cruzada. Deixem-me puxar a brasa à minha sardinha ateísta, sublinhando o aspecto que mais me impressionou neste filme a primeira vez que o vi: ninguém precisa de Deus para ser feliz, se divinos considerar aqueles que mais ama. Divinos é só uma forma simplificada de dizer imprescindíveis. Que é Deus ao pé da nossa família? Por vezes, um obstáculo ao amor, a esse amor que nos sai mais das vísceras do que da razão. Esse amor que não se explica por acreditar, esse amor que não se explica pela fé, esse amor que pura e simplesmente se explica a si próprio no momento de se fazer sentir. Faça-se ele sentir numa manhã soalheira, no sorriso da mulher amada, num acto de criação, na companhia dos amigos, no colo dos filhos, na ingenuidade da esperança, na dança dos mortos. Foi esse o mistério da vida que encontrei neste primeiro filme de um realizador que nunca me decepcionou. Da sua obra, imprescindíveis têm sido para mim tantos outros momentos: Saraband, Lágrimas e Suspiros, Persona, Morangos Silvestres, Mónica e o Desejo

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