quarta-feira, 28 de junho de 2006

DESTINO

O Destino

O Destino
de Youssef Chahine

«Por ordem da Santa Igreja do Languedoc, o Tribunal da Santa Inquisição sentencia o herege Gérard Breuil a ser queimado na fogueira junto a todos os seus excritos, por se ter afastado das vias do Senhor Jesus ao traduzir a obra do herético Averróis». Estamos no século XII. A filosofia de Averróis, nascido em Córdoba no ano de 1126, era à época uma das dores de cabeça da Santa Igreja. Sobretudo os comentários a Aristóteles. Contudo, Averróis não era uma dor de cabeça só para a Santa Igreja. Mais a sul, na Andaluzia, o Califa acusava-o de traição. O resultado foi o que se viu: «Por terem caído no oceano de ilusão e obscurecido o juízo do povo, o Califa proíbe os seguintes de ensinarem em escolas e mesquitas. Ordena também que os seus livros sejam queimados em público e que eles sejam banidos». Banido em todas as direcções, restava ao filósofo confiar ao destino as suas ideias. Entre uma e a outra fogueira, acontece uma história, decorre um filme. Não sendo especificamente sobre Averróis, este é um filme construído em torno da sua filosofia e da forma como a mesma foi resistindo ao tempo. Servindo-se disso, o egípcio Youssef Chaine (n. 1926) propõe-nos uma obra onde vários elementos se conjugam sobre uma ideia fundamental: «as ideias têm asas, nada pode impedi-las de voar». Resta saber quais são as ideias que aqui ganham asas. Visto à distância de nove anos, este é um filme actualíssimo onde já pairava o fantasma do fundamentalismo religioso. Um Califa consumido pela vaidade, manipulado pelos interesses obscuros – que é o mesmo que dizer pela ambição de poder - de uma seita religiosa, personifica bem o que tem sido grande parte do poder político no mundo islâmico. Já a seita, nos seus métodos de persuasão, nos seus intentos purificadores, na promoção da obediência cega ao Emir, na condenação de excessos tais como cantar e dizer poemas, é-nos em tudo insuportavelmente familiar. Onde entra a filosofia de Averróis? No elogio da razão e dos prazeres deste mundo, no elogio da vida e do amor à vida, na luta contra qualquer tipo de substituição da palavra e do jugo divinos pelas sentenças dos homens… Cinematograficamente, Youssef Chaine pratica o mesmo tipo de raciocínio. Os momentos musicais e as coreografias atestam-no, para não falar num erotismo disfarçado que vem à tona em diversas cenas. O final esperançoso e algo ingénuo remete-nos para um plano ideal que é bom não esquecer. E, de certa forma, é bom não negar logo à partida. É essa ingenuidade – chamar-lhe boa vontade também não ficaria mal -, o que mais aprecio neste filme. Youssef Chaine tinha 70 anos quando o levou à cena. Pergunto-me se daqui a 40 anos terei coragem suficiente para pensar também que «as ideias têm asas, nada pode impedi-las de voar». Digo coragem e, infelizmente, não o digo por equívoco. É que mesmo tendo asas, nos tempos que correm, tudo parece concorrer para que as ideias não voem. Ou, pelo menos, para que fiquem arrumadinhas na gaiola das conveniências do mercado.

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