domingo, 27 de agosto de 2006

OS CICLOS DO BAMBU

Há uns bons meses, em crónica no jornal Expresso, Clara Ferreira Alves elencou aqueles que considera serem «os grandes autores da segunda metade do século XX e do século XXI que temos»: Philip Roth, J. M. Coetzee, Salman Rushdie, Martin Amis, Michel Houellebecq, John Le Carré, Harold Pinter, V. S. Naipaul, ou o português José Saramago. Na opinião da cronista, estes autores caracterizam-se por manterem «a visão distópica e negra como sustento da sua narrativa, da sua escrita e da sua voz». Dito de outra forma: «Não acreditam no triunfo da humanidade, pelo contrário, condenam-na e desautorizam-na, à luz da iniquidade histórica do tempo e da mania de destruição e autodestruição que continua a ser a principal característica do predador humano». Tendo sempre a desconfiar deste género de caracterizações, destas hierarquias valorativas, destes modos de organizar o mundo e a literatura enquanto representação escrita desse mesmo mundo. Não sei se aqueles são os grandes escritores do século XXI, nem se a sua literatura consiste numa afirmação dessa tal «visão distópica e negra» da humanidade. Chego mesmo a suspeitar que as visões distópicas e negras da humanidade surjam mais das perspectivas preconceituosas com que olhamos o mundo à nossa volta do que do mundo ele mesmo. Afinal de contas, não sendo o homem muito diferente do que era na antiga Grécia, vive-se hoje incomensuravelmente melhor do que se vivia naqueles tempos. A diferença residirá, talvez, na pressa com que se vive e no modo como a toda a hora nos chegam e afectam os males de quem vive. Não creio que esteja a ser optimista reconhecendo o que para mim, apesar de tudo, parece óbvio. Da humanidade não se pode esperar que não seja humana. Isto é: cínica, cruel, invejosa, bárbara, hipócrita, mesquinha, energúmena; mas também: criativa, sincera, lúdica, solidária, inteligente, sábia, verdadeira. Tudo isto são os homens e as mulheres que compõem aquilo a que chamamos humanidade. Privar esta humanidade de uma das suas facetas será, inevitavelmente, assumir uma perspectiva preconceituosa acerca da mesma. Mas que tem tudo isto que ver com literatura? É que as asserções de Clara Ferreira Alves deixaram-me a pensar que, hoje em dia, uma literatura contracorrente será aquela que se oponha ao paradigma das visões distópicas e negras da humanidade. Será uma literatura ligeira sem ser vazia, uma literatura de esperança que não resvale na crendice, uma literatura sóbria (mas não excessivamente racional), uma literatura que divirta sem provocar aquele tédio próprio do entretenimento desprovido de sentido, uma literatura onde ainda se encare a humanidade sob o ponto de vista de uma eterna aventura, uma literatura que não negue à humanidade a sua natureza: ser parte integrante dessa Natureza da qual há muito começou a se afastar - “Sejam férteis e cresçam; encham a terra e dominem-na; dominem sobre os peixes do mar e as aves do céu e sobre todos os animais que andam sobre a terra.” Xavier Queipo (n. 1957) não será um dos «grandes autores da segunda metade do século XX e do século XXI que temos», mas é uma literatura dessas, contracorrente portanto, a que nos propõe na colectânea de contos que a Deriva publicou em Novembro passado. Os Ciclos do Bambu, assim se chama a compilação, reúne um belo conjunto de textos escritos sob o signo do Oriente e das filosofias orientais. Não se trata de patacoada Zen, fundamentada naquele tipo de culto pueril que enche salas de yôga e faz as delícias de uma burguesia ocidental dedicada à contemplação duas vezes por semana. Estes contos, repletos de referências à filosofia taoista, a pequenos poemas orientais, a provérbios chineses, escritos por vezes como se fossem «um mantra de palavras inventadas ou sonhadas», promovem um sossego e um equilíbrio que chega a ser estranho de tão desprezado na literatura actual. «São escolhas, rupturas da ansiedade primordial, inflexões no trânsito» (p. 97). Pois são, e cada qual escolhe viver como quer, a ler, se assim quiser, o que quiser. Xavier Queipo é médico, vive em Bruxelas, tem vários livros publicados (romance, contos, poesia). Eu comecei por aqui, mas vou procurar mais.

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