Arrumar as estantes tem destas coisas. Enquanto nos surpreendemos com tudo o que nunca lemos, bem mais que o já lido, e redescobrimos paixões antigas, algumas falhas inevitáveis, mas também muito tempo perdido com inutilidades, vamos desfazendo alguns equívocos. Até à tarde de hoje julgava nunca ter lido nada de Enrique Vila-Matas (n. 1948), o prosador catalão que faz as delícias de muitos leitores portugueses. Acontece que ao redistribuir a livralhada pelo espaço disponível, caíram-me em mãos uns tais Suicídios Exemplares (aos quais não devo ter prestado grande atenção, dado o esquecimento a que foram votados). Algumas - poucas - frases sublinhadas provam que os li, mas não faço a mínima ideia quando, como e onde. Também não importa. Vem a conversa ao caso porque durante as férias, numa visita à segunda edição da feira do livro de Aljezur, adquiri, pela módica quantia de vinte euros, um pacote com seis livros do supracitado autor. Por sorte, entre a tal meia dúzia, não constavam os negligenciados suicídios. De outra rama era feito o pacote: História Abreviada da Literatura Portátil (1985), Filhos Sem Filhos (1993), Longe de Veracruz (1995), Estranha Forma de Vida (1997), A Viagem Vertical (1999), Bartleby & Companhia (2000). Deixo as datas das edições originais. Numa manhã de mau tempo, dividido entre a ronha e um jogging, acabei a ler o primeiro. Dizem tratar-se de um livro emblemático na carreira de Vila-Matas, iniciada em 1977, por culpa do reconhecimento que lhe valeu à época da primeira edição. O livro terá vendido a rodos e não admira. Partindo de um suposto projecto literário do dadaísta Tristan Tzara (n. 1896 – m. 1963), que consistiria na elaboração de uma «história portátil da literatura abreviada», Enrique Vila-Matas oferece-nos neste livro um divertido e curioso exercício literário que «se caracteriza por não ter um sistema a propor, mas apenas uma arte de viver». Reconhecemos facilmente os nomes dos personagens, associamo-los, inevitavelmente, a um tempo e a uma forma de viver, mas tudo o resto só é verosímil pela imaginação. Aquilo que se conta nesta história é o que a História não logra contar, ou seja, «os pilares sobre os quais assentou a sociedade secreta shandy». Entre os shandys encontramos o mago Aleister Crowley (n. 1875 – m. 1947), os artistas Francis Picabia (n. 1879 – m. 1953) e Marcel Duchamp (n. 1887 – m. 1968), o músico George Antheil (n. 1900 – m. 1959), o poeta Blaise Cendrars (n. 1887 – m. 1961), entre muitos outros. Estabelecem como requisitos para entrar na sociedade o permanecer solteiro, um elevado grau de loucura, obras que não fossem pesadas e coubessem facilmente numa maleta, assim como as seguintes recomendações: «espírito inovador, sexualidade extrema, ausência de grandes propósitos, nomadismo infatigável, tensa convivência com a figura do duplo, simpatia pela negritude, o culto da arte da insolência». Fundado em Port Actif (?), uma povoação africana situada na foz do rio Níger, o shandismo sucumbirá com a autodestruição do último shandy em Sevilha. Pelo meio, ficam os episódios de uma célebre vaga de suicídios juvenis na Paris de 1924, a invenção de um método de encontrar artistas portáteis nas ruas de Paris, um violino masturbador chinês como duplo de Dalí, o método de pesar textos, etc, numa novela que pode também ser lida como uma sátira às vanguardas, mas onde, acima de tudo, se homenageia o «caos donde nascerá, por fim, a literatura». Gostei do teor delirante, de um certo humor com contornos satíricos, da forma como a irrealidade se imiscui por entre o factual, como se toda a História não passasse, de certo modo, de uma ficção. Tal como na vida dos shandys, tudo é um outro neste livro, tudo tem a sua sombra, a sua segunda face, o seu duplo. Assim a literatura, assim a História. Assim, provavelmente, a própria vida.
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