sábado, 17 de março de 2007

NO FIM DAS TERRAS

Um amigo ofereceu-me, há já alguns meses, este No Fim das Terras (Ateliê Editorial, 2005), do brasileiro Milton Torres. Sobre o autor apenas consegui saber o que aparece divulgado na Internet em meia dúzia de sítios: historiador gaúcho e diplomata de carreira, Milton Torres é cônsul-geral do Brasil em Houston, Texas. Não lhe descobri outros livros de poesia, mas suponho que seja de sua autoria um ensaio, dedicado à História do Maranhão, intitulado O Maranhão e o Piauí no espaço colonial (2006). Também em No Fim das Terras é o período colonialista que mais ecoa, organizando-se o livro, à laia de uma espécie de anti-epopeia, em torno de questões relacionadas com a época dos descobrimentos e da expansão territorial portuguesa. Trata-se, portanto, de um livro conceptual, de leitura difícil, exigente, e, sobretudo, reivindicador de uma erudição que escapa à grande maioria dos leitores (este que vos escreve incluído). Há, no entanto, duas formas de nos posicionarmos perante este tipo de livros: optarmos por perscrutar exaustivamente a teia de sentidos e de significados que ele nos sugere ou, de forma mais humilde, ficarmos por lhe captar o tom geral relevando-lhe os momentos e os aspectos que consideramos mais essenciais. Outra opção não pode ser a nossa senão a segunda. Comecemos pela estrutura da obra: duas partes – Portugueses e Novo Mundo – desdobram-se em quatro subdivisões cada – Hispânia, da memória, do império, do pensar e do fazer, na primeira parte, e Novo Mundo, poemas brasileiros, quadras do sul e poemas do Rio, na segunda parte. A estrutura parece-me aqui especialmente significativa dado o itinerário histórico que aponta, com um retrato do curso da colonização das Américas, ao mesmo tempo cruel e irónico, por isso realista, a pontuar a primeira parte, e uma reflexão acerca da condição cultural dos territórios colonizados, nomeadamente do Brasil, a sobressair na segunda parte. Na primeira parte encontramos imensas referências intertextuais (de Gil Vicente a Garcia de Orta, de Fernão Lopes a Afonso de Albuquerque e Damião de Goes, entre outros), e um vocabulário riquíssimo que se divide entre o português arcaico e o castelhano, o solene e o calão. Sobre este aspecto, Ivan Teixeira diz-nos no posfácio: «No mundo pós-moderno, o poeta épico será, antes de tudo, um artista do idioma. Deverá saber incorporar vocábulos nacionais, vocábulos internacionais, vocábulos correntes, vocábulos arcaicos, vocábulos sublimes, vocábulos baixos, gíria, ciência, sexo, arte e esculhambação» (p. 222). É isso que Milton Torres pratica, ressaltando à vista um extraordinário trabalho de montagem, com escola no concretismo, onde o denominado poema-colagem dialoga com apontamentos, mais ou menos herméticos, sobre as malhas com que se costurou o Império colonizador: «a própria razão dos impérios, a sua metalinguagem: gigantes uns poucos / pigmeus quase todos» (p. 65). Deste modo, como bem refere Leopoldo Bernucci no prefácio, «o poeta submete a expansão portuguesa a escrutínio naquele ponto em que ela permite desmascarar o autoritarismo da política do Estado quanto à rigidez estamental (“Empresa Marítima”) e a forte censura pela qual passavam os cronistas (“Escreve, Escriba, que Caiba”)» (p. 20). Na segunda parte mantém-se o tom crítico, mas a dimensão irónica desta poesia faz-se notar de forma mais evidente. Julgo estarem aqui os melhores poemas de No Fim das Terras, ou, pelo menos, aqueles que mais apreciei, talvez por razão dessa tal dimensão irónica que, sublinhe-se, logra conjugar de forma exemplar o testemunho com a metáfora, a denúncia com a reflexão, a crítica com a inventividade e, em certa medida, a própria subversão da linguagem, sem a qual nenhuma poesia sobrevive, com um erotismo algo galhofeiro. Um excelente exemplo é este Madrigal A Uma Negra: «a branca é chocha e não tem o teu bodum / oh Chica! / a tua bunda as sete saias enfuna / qual duas morangas inchadas da chuva. / esconde a noite a tua pele / mas acho-te pelo cheiro oh Chica / ou pl’os dentes quando ris / que mais faíscam que as faíscas mais todas / do rio» (p. 146). No Fim das Terras é, em suma, um livro que merecia outra divulgação, mais não fosse por nos desafiar, nesta época de impérios encapotados, a repensar o lugar da História. Afinal, as notícias de escravatura no presente, misturadas com as tramas da globalização, a isso obrigam. As caravelas são hoje de outro tipo, os navegadores nunca foram os heróis que a escola nos impingiu, a política é o mesmo tumor de sempre. Oremos.

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