Nos últimos anos tem-se assistido à publicação de vários volumes que reúnem as obras completas dos seus autores. Quando postumamente, justifica-se por si só esse trabalho de reunião. Quando ainda vivos os autores, torna-se lícito supor e esperar, salvo raras excepções, que a obra ainda não esteja completa, pelo que, nesses casos, a reunião outra intenção não terá senão a de atribuir visibilidade e promover uma obra ainda em construção. Há sempre o pretexto de tornar mais acessíveis títulos perdidos no tempo, publicados e distribuídos de forma mais ou menos limitada, edições apenas ao alcance de autênticos ratos de alfarrabista, mas esse é um jogo com o qual o leitor amante de poesia deverá ter uma relação de puro gozo, pois prazer maior não há do que trazer às mãos aquele livro que tanto se ansiou e nunca se encontrava. Como alternativa, poderiam ser reeditados os livros mais difíceis de encontrar. O problema é que, muitas vezes, assim como desaparecem os livros desaparecem as editoras que os tornaram públicos. Note-se como são raríssimas as reedições de poesia em Portugal, ainda mais raras que as reuniões de obras completas onde nem Obra julgaria o leitor mais desatento haver. A par deste fenómeno, temos o da publicação de antologias pessoais. Nestes casos, normalmente, o autor selecciona aqueles que considera serem os poemas mais representativos do seu percurso e agrupa-os num só volume. Confesso não nutrir grande simpatia por este tipo de prática. À vantagem da amostra de um percurso, sobrepõe-se a desvantagem dos cortes e recortes em livros que valiam pelo seu conjunto e que, fragmentados, podem perder parte do seu significado. Talvez por isso Amadeu Baptista (n. 1953) não tenha resistido a republicar na íntegra, nesta sua antologia pessoal, o último dos volumes que a integram: Negrume, excelente livro de poesia publicado pela & etc. no ano transacto. Trata-se de um caso especialmente intrigante, dado sabermos ser a & etc. avessa a reedições. Tendo Negrume saído em 2006, estranho se torna que apareça agora, apenas um ano depois, numa outra editora, reeditado na íntegra. O prefácio de Antecedentes Criminais, um poema inédito dedicado ao editor Vítor Silva Tavares, explica apenas não estarmos na presença de um autor convencional. Começa deste modo: «Estou a cumprir pena perpétua. // Na infância, uns filhos da puta rodearam-me / com triângulos escalenos e não pude / fazer mais que emocionar-me» (p. 9). Termina o poema, intitulado Pena Agravada, assim: «Triângulos escalenos trouxeram-me a este cais / e, tal como na infância, uns filhos da puta me rodeiam. // Não posso fazer mais que emocionar-me» (p. 11). Como disse, certo é apenas não estarmos na presença de um autor convencional. E se esta é uma obra que pretende comemorar as bodas de prata de todo um labor poético, não deixa de ser também uma obra que comemora a inquietude de um autor avesso a conformismos, um autor que parece pretender manter com o mundo (da poesia) uma relação de perplexidade. Além de Negrume, estão representados todos os livros dados à estampa por Amadeu Baptista desde As Passagens Secretas (1982). Feitas as contas, estabelecemos uma relação de 5 livros publicados na década de 1980, apenas 3 na de 1990 e 8 já nos anos 2000. Sendo pelo menos metade desta obra relativamente recente, o resultado final sai especialmente valorizado nos poemas mais antigos e na inclusão de um conjunto alargado de dispersos, onde se destaca a edição integral de Rosto Soberano (p. 242) e um outro inédito, a fechar, desta feita dedicado a Fiama Hasse Pais Brandão. Ficamos com a ideia de um autor que pratica com extraordinária desenvoltura o poema de maior fôlego. Excelente exemplo é Balada da Neve (p. 216), saído originalmente na Hífen, 11, em 1998. Mais uma vez a perplexidade embaraça a leitura, prosa e verso confundem-se, uma densidade metafórica multirreferencial imiscui-se com invocações quotidianas, familiares, num campo que parece ser tanto o da memória como o da imaginação. Este poema é especialmente representativo do que de melhor tem a obra de Amadeu Baptista, por nele confluir todo um trabalho de imagens, símbolos, metáforas, provenientes de várias tradições. Neste sentido, eu diria que na poesia do autor de A Noite Ismaelita como que se subvertem certos sinais das tradições judaico-cristã e islâmica, mas também da helénica, num processo de recriação e deslocamento metafórico que tanto resulta num erotismo desabrigado (Signo de Vénus, p. 88), num hermetismo de tipo iniciático (Salmo, p. 149) como num lirismo com contornos tão idealistas quão humanistas: «Tudo o que é humano me atinge, / porque tudo o que é humano é divino» (p. 130). Lugar de confronto, esta é uma poesia marcada pela presença da ruína (civilizacional?) e por essa imagem recorrente da praia, encontro do mar com a terra, que tanto pode ser «uma praia de colmo» (p. 22) como «uma praia de consolação» (p.27) – evocação de Ruy Belo -, uma «praia amena» (p. 64) ou a «praia onde a fogueira cresce» (p. 192). De certa forma, podemos dizer que a praia é aqui o lugar simbólico da paz ausente e do abrigo, do refúgio, como das transformações e da dinâmica da vida tem sido símbolo o mar: «Algum velho pescador há-de encontrar / entre as ondas as ondas do meu peito, / também por uma praia me perdi, / eu sou agora o marinheiro / que te procura no mar, / porque dizendo mar eu digo vida, / e quando se diz vida há um caminho / que conduz ao amor, / palavra feminina onde o mar está oculto / eis a verdade, / o mar o amor» (p. 246-247). Ora, neste tempo de naufrágios diversos que é o nosso, o poeta surge então como um criminoso, na medida em que vive a poesia numa ânsia de sobrevivência ao desmoronamento do tempo. O primeiro de todos os crimes do poeta é entregar-se ao amor, à palavra, à subversão da linguagem, à busca de uma eternidade cuja ausência o inquieta e abala como um mar revoltoso. Título pertinente como outro não poderia ser, estes Antecedentes Criminais, numa excelente capa a fazer lembrar alguns trabalhos de Robert Rauschenberg.
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