Apanhei ontem na 2 parte de um documentário sobre os Gacaca, julgamentos regionais praticados no Ruanda. No caso, pretendia-se encontrar eventuais cúmplices no fatídico genocídio perpetrado no país durante o ano de 1994. Há um filme recente, Hotel Rwanda, que aborda este momento sinistro da história da humanidade, só mais um dos muitos que tingiram todo o século XX e ameaçam voltar a matizar o XXI. Os Gacaca são tribunais comunitários inspirados em tradições ancestrais do povo ruandês. Consistem numa tentativa de apuramento da verdade através do confronto oral, perante toda a comunidade, entre testemunhas, vítimas e acusados. Toda a gente tem direito a manifestar-se. Há uma espécie de júri que vai mantendo a ordem, dando voz a quem deseje dizer de sua justiça. No final, perante as provas apresentadas, que, basicamente, consistem na força da verdade dos argumentos utilizados, é o povo quem decide da culpabilidade ou inocência dos suspeitos. Este tipo de prática exige uma crença na verdade que, aos nossos olhos, parece absurda. Dificilmente alguém do nosso mundo acredita que um réu diga a verdade, caso esta implique a sua condenação. Naquele caso, segundo entendi, a esperança do réu é a de que dizendo a verdade possa ser perdoado. Estava a ver o documentário e, ao mesmo tempo, pensava num texto que Nietzsche escreveu em 1873: Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral. Nesse texto extraordinário, o filósofo alemão começa por afirmar que «o intelecto, como meio para a conservação do indivíduo, desenvolve as suas forças dominantes na dissimulação», acrescentando que «no homem, esta arte da dissimulação atinge o seu ponto mais alto». Vale a pena, pelo que de fotográfico possui, continuar a citação: «nele [homem] a ilusão, a lisonja, a mentira e a fraude, o falar nas costas dos outros, o representar, o viver no brilho emprestado, o usar uma máscara, a convenção que oculta, o jogo de cena diante dos outros e de si próprio, numa palavra, o esvoaçar constante em torno dessa chama única, a vaidade, são de tal modo a regra e a lei que não há quase nada mais inconcebível do que o aparecimento nos homens de um impulso honesto e puro para a verdade». Termo-nos habituado a estes retratos, que tanto nos inventam quanto nos exprimem, levou-nos a ver na arte um momento de revelação da verdade, porque nessa esfera todos os julgamentos são inócuos. O artista, enquanto criador, deve poder dizer tudo sem que nisso se constate um crime – esta lei dita que a obra passe a ser vista como um depósito da verdade. O que é curioso é que, ao mesmo tempo, o próprio artista não evite, muitas vezes, de ver na arte mais um exercício de dissimulação. Deste modo, o que é a verdade? Para Nietzsche é, numa das mais belas definições de verdade que alguma vez li, «um exercício móvel de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixas, canónicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais, metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são consideradas, não já como moedas, mas como metal» (sublinhado meu). Não nos deixemos, no entanto, embalar pela extraordinária verve do filósofo. Não deveremos nós considerar também esta uma dessas verdades ilusórias? Talvez. O que sei é que há verdades que nos parecem inquestionáveis, como, por exemplo, a verdade de alguém estar, neste momento, a ler este texto. E há verdades que valem mais do que outras, como, por exemplo, a verdade de um médico, perante um corpo constipado, em confronto com a verdade de um padre. Na nossa vida habituamo-nos desde muito cedo a classificar as coisas, entre as quais a verdade se inclui como um dos exemplos mais trágicos. A classificação da verdade, assim como a da mentira, em mais verdade ou menos verdade, tem levado a que a própria verdade perca verdade. A verdade deixou de ser verdade, isto é, deixou de ser algo que existe para passar a ser algo que se almeja para se transformar em algo improvável para não existir de todo. Não sei como funcionaria um Gacaca entre nós, mas temo que ficasse longe dos objectivos pretendidos. Mesmo que em vez de falar, fosse dada ao réu a possibilidade de dizer a verdade num poema, numa pintura, numa partitura, a dançar.
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