A obra poética de m. parissy tem vindo a ser erigida à margem de todas as agremiações que matizam a mais actual poesia portuguesa. Nascido na Nazaré, em 1969, começou a publicar em 1989. Os seus livros, de edição restrita, têm vindo a lume em edições do autor ou em pequenas editoras, tais como a Universitária, as Edições Mortas e a Black Sun. São livros que facilmente escapam a um público menos atento, bombardeado que é a todo o momento com dezenas de títulos de poesia que vão sendo publicados em editoras de maior visibilidade e com uma distribuição mais alargada. Não é bom nem mau que assim seja. As coisas são o que são. Mas o esforço editorial destes projectos mais alternativos, muitas vezes individuais, cujo mérito está em tornarem possível a publicação de obras desalinhadas, sem qualquer tipo de filiação, não pode deixar de aqui ser louvado. Vertigem aparece com o selo da Canto Escuro, projecto editorial de Vítor Vicente onde já foram publicadas obras do próprio, de José Emílio-Nelson, Rui Carlos Souto e do Padre Mário de Oliveira. É um livro que mantém as coordenadas de outros volumes de m. parissy, quer do ponto de vista da construção formal quer no que respeita à tonalidade dos versos. Apraz registar uma coerência e uma homogeneidade que, não sendo, por si só, garantia de qualidade, garante-nos uma voz segura de si mesma. Dividido em quatro partes – Vertigem, Voz, Silêncio, Delírio -, que podem ser entendidas como quatro partes de um só argumento poético, de tipo cinematográfico, este livro torna-nos mais uma vez presente uma poesia que não é de leitura fácil, uma poesia que rejeita o discurso directo, que privilegia um certo recatamento, uma poesia, em suma, indagadora da sua própria condição. De certa forma, os versos de Vertigem tanto representam como transfiguram aspectos diversos do real, mas falsificam essa transfiguração metaforizando-a, colocando sobre ela um manto de imagens que tornam menos acessível a interpretação. É como se entre o sentido do poema e o leitor tivesse sido construído um muro com algumas frestas. O leitor espreita por essas frestas, atraído pela luz que delas imana, tentando ver o que possa estar escondido do outro lado do muro. No conjunto que dá título ao livro vislumbramos logo um cenário, a praia, e algumas personagens, como os príncipes, organizados em cenas por vezes eróticas, outras vezes remetendo para as raízes geográficas, que desenham uma trama amorosa sempre mais implícita que explícita. A vertigem que aqui vislumbramos é a do homem arrancado às suas origens, afastado no tempo e no espaço de um lugar que agora reconstrói através da memória, é a vertigem daquele que busca as suas raízes através de um trabalho que é o trabalho do olhar, mas também a vertigem do amante separado do seu amor. Como uma espécie de pintor, o poeta é “o homem que desenha com o olhar”, é um pintor cujo «estilete vai criando / novos horizontes» (p. 19). Esta é pois uma poesia que se tece na malha dos sinais, como um sonho que se interpreta a partir de uma língua difusa, a língua das imagens postas em palavras, imagens obscuras, por desvelar, imagens que procuram um sentido, vertiginosas, carentes de um equilíbrio talvez fruto de uma sensação de desenraizamento: «não chega que ao quadro / apenas os olhos se vistam / de novas cores // só sob o remorso / de uma aldeia ancestral / se recolhe o passado // e o que perdura / do homem que desenha / são as chamas / que colhemos aos poucos // recolha / com o afecto nu das vertigens» (p. 26). Nos conjuntos subsequentes é também este o tom que ecoa, embora mais focalizado num tempo presente que não perde de vista as pegadas do passado. Há uma segunda pessoa que se intromete pelo caminho, sabemos apenas que é uma figura feminina (cf. p. 37), mas não sabemos quem possa ser. Apenas nos é possível reconhecer, aqui e acolá, os desabrigos da cidade, uma sensação de deslocamento urbano, uma espécie de desintegração e de ruína, como um sonho que se encerra no interior de um túmulo. Ficamos também a saber que alguém partiu, que «no futuro as vagas darão à praia / como as sombras vertem o céu» (p. 54), que «o amor alimenta-se de frutos podres» (p. 64) e que quem partiu “sorveu o cio da casa”. Talvez este seja mais um argumento do amor que fica pelo caminho, ou dos caminhos que são feitos pelo amor. Talvez aqui o amor possua uma extensão de significações que nos escapam nos ângulos mortos das tais frinchas de que há pouco falava. Talvez o desequilíbrio que aqui se manifesta, da vertigem ao delírio, mais não seja do que a vida a tentar retomar o seu caminho. Vertigem é um livro perturbador. Muito mais não se pode pedir a um livro de poesia.
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