Paulo da Costa Domingos (n. 1953) tem vindo a rever, nos últimos anos, o seu trabalho poético inicial. Foram disso exemplo novas versões de Gogh, Uma Orelha Sem Mestre (2004) e Asfalto (2005), inicialmente editados na &etc nos anos respectivos de 1975 e 1977. Saídas na Frenesi, casa editorial aparecida em 1979 como uma espécie de território autónomo da &etc, essas novas versões transformaram o que antes era um discurso alucinado, de boa memória para com os ensinamentos da Geração Beat, num manifesto da desilusão, último reduto da revolta, que procura reagir, na medida do (im)possível, contra uma contemporaneidade alicerçada já não apenas na hipocrisia promovida pelos motores da sociedade de consumo, como também na desvalorização do homem e consequente desumanização do mundo. Este tempo de bocas hiantes, famintas de um próprio que não se conquista senão através da aniquilação do próximo, é o tempo que aparece denunciado nas novas versões desses "velhos livros", como um rastro que se retomou na busca de um papel para a poesia: o de estar à altura do seu tempo, confrontando-o com os seus podres, com os seus crimes, com os seus tormentos. Nas extremidades dessas novas versões há outros dois livros, também editados na Frenesi – projecto editorial, de resto, indissociável da obra pessoal do seu editor -, que importa reter: De Regresso ao Campo de Honra (2003) e Nas Alturas (2006). O registo discursivo deste último é em tudo similar ao das novas versões supracitadas, pelo que seria interessante ler as três obras como uma espécie de trilogia onde se tenta retratar o complexo perfil dos tempos hodiernos. No entanto, atentemo-nos, para já, ao volume de 2003. Organizado como um drama, abre com uma epígrafe retirada de Henrique V, peça da autoria de William Shakespeare que reconstitui a vida do monarca britânico: «we few, we happy few, we band of brothers; / for he to-day that sheds his blood with me / shall be my brother; be he ne'er so vile, / this day shall gentle his condition». A metáfora militar do título remete-nos para um universo poético onde se recusa à poesia o estatuto de coisa anódina, optando-se antes pela prática do verso como quem dispara num campo de batalha contra os seus inimigos, sejam eles os circos político ou social que adestram os homens com o alimento da estupidez e da indiferença. Este combate, aqui representado em quatro falas – Língua de Prata, Disse Ela (1997), Na Floresta de Sim (1998), Espalha Brasas (2000-2003), Patchwork de Celeste Viriato (1979) – trava-se num cenário de aldeias desaparecidas, cidades em declínio, promessas desfeitas, deambulações nocturnas, vales sombrios, traições; trava-se nos estádios da «corrida da sobrevivência», da rebeldia, da anarquia, da memória. «A missão / é passar depressa arrasando tudo». O tom é ainda o de um corpo em queda, o do delírio, o tom confuso de vários ecos chocando uns contra os outros, um circo decrépito, burlesco, no momento de ficar com todas as cadeiras vazias. Celeste Viriato, o pseudónimo chamado à liça, conclui: «O futuro é um vazio». Três anos passados, surge Nas Alturas. O que se nos propõe é um olhar sobre esse vazio, mas um olhar caseiro, intramuros, perspectivado a partir de uma pergunta derradeira: «Prevalecerá nossa marca / secular nos séculos do povo?» (p. 7). Paulo da Costa Domingos traz para a página os «escravos desta vida moderna»: a prostituta de rua, a mulher da limpeza, os imigrantes de leste, os desempregados, etc. Estão também presentes a televisão e a Internet, janelas artificiais para um mundo postiço. Na casa de onde escreve "versos inúteis", elegias do dia futuro, o poeta olha e põe a descoberto, como quem desvela, um país acossado pela desmesura da ambição, a mesma que justifica o mal com o mal, o vício com o vício. É o Portugal cobarde e desprezível aquele que se pressente nestes versos, o Portugal de uma Europa entretida com o patrocínio de políticas autofágicas porque autistas e, desse modo, agravadoras apenas das ancestrais assimetrias que discriminam os seus órgãos. Nestes poemas dificilmente descortinamos a luz de uma esperança, ínfima que seja, dificilmente vislumbramos a fé no caminho de uma solução possível. O único itinerário é o do vazio absoluto, ou, dito de outra forma, o do esvaziamento e da estrangulação dos homens, demasiadamente entretidos a olhar nas montras os mais recentes modelos consumíveis que lhe disfarcem a agonia. Se o caminho foi o do desenraizamento, o cais de atraque só poderá ser o de um inevitável esgotamento. Vão safando-se, na conta corrente dos dias, os “refinados filhos da puta” que melhor souberem adaptar-se ao absolutismo das relações mecanizadas sob o signo do deve e do haver, porque é já tudo, como se costuma dizer, uma questão de mercado. Daí que, à pergunta inicial, uma única resposta pareça possível quando se pratica a inutilidade do verso: «A poesia não é só dos solitários companhia. / Encurta distâncias entre os que não sabem / onde acaba o culto da letargia e começa a luta» (p. 46). Temos os poemas. Espalhem-se as bombas.
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