quinta-feira, 19 de julho de 2007

NÃO SABIA QUE A NOITE PODIA INCENDIAR-SE NOS MEUS OLHOS

Graça Pires (n. 1946) estreou-se em 1990 com um livro, simplesmente intitulado de Poemas, ao qual tinha sido atribuído, dois anos antes, o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Ainda na década de noventa publicou quatro obras, todas elas premiadas. Poeta dos famigerados anos noventa, pelo menos tanto quanto podemos afirmar que Manuel Gusmão (n. 1945) o seja, Graça Pires é um caso paradigmático de como ao reconhecimento, por vezes, não se alia a exposição pública. Tratando-se de uma obra que prima pela sinceridade, quando não por uma singeleza delicada e sóbria, não é de estranhar que tão poucas vezes a tenhamos visto recebida pela crítica especializada. É que dessa crítica especializada pouco mais podemos esperar do que uma especialização repetidamente atenta aos núcleos especiais, todos eles, como sabeis, muito complexos nas suas propostas e graves na análise. Livros como Ortografia do Olhar (1996) e Reino da Lua (2002) mereciam outra atenção, uma atenção que, a não existir, pode induzir a leitura do mais recente volume da autora em interpretações talvez menos acertadas. Não sendo dos livros de Graça Pires o que mais me agradou, desde logo por centrar-se numa temática existencial que escapa à minha sensibilidade, é um livro bem construído, poeticamente ousado - tendo em conta, sobretudo, o carácter secular do tempo em que vivemos – e contrastante, como se querem todos os livros de poesia dignos desse nome. Abre com onze poemas em prosa, poemas que são cartas, onde a autora, respigando duas personagens bíblicas – Marta e Maria -, nos introduz no conflito impulsor da actividade poética. Esse conflito é o da transposição das barreiras que separam a luz da sombra, os olhos (órgão físico) da visão (acto mental), a terra do céu ou, como sucede no episódio das duas irmãs evocadas, o material do espiritual. Nas onze cartas de Marta a Maria aqui recriadas vislumbramos essa transposição das razões que procuram justificar os gestos, a recusa de uma distinção que impeça a entrega do olhar àquilo que o próprio olhar invoca no corpo íntimo da visão, porque aqui a “razão” surde da entrega à contemplação, uma contemplação que é o encontro com «a nitidez do silêncio» (p. 13). É curioso que seja a atarefada Marta, figura feminina talvez mais presente e actual, quiçá interposição histórica do sujeito poético, quem escreva a Maria. Mas mais do que escrever para Maria, Marta escreve para si própria. Estamos no campo de uma poesia que se assume tanto enquanto processo de autoconhecimento como «um ritual de memórias» (p. 12), um autoconhecimeto, ao contrário da generalidade das práticas poéticas actuais, que procura «não esquecer» (p. 14). Porquê onze cartas? Fruto do acaso? Talvez não. Se sim, é saborosa a coincidência com o facto do «número onze, que parece mesmo uma chave da Divina Comédia, [extrair] também o seu simbolismo da conjunção dos números 5 e 6, que são o microcosmos e o macrocosmos, ou o Céu e a Terra» (Cf. Chevalier, J. e Gheerbrant, A.). Seja como for, não é esse simbolismo a chave deste pequeno livro. A segunda parte, intitulada Sombras, desvela o que possa existir de simbólico nesta composição de Graça Pires. São 22 poemas (11+11) – ou 22 fragmentos de um longo poema, tanto faz – onde o «labirinto de luz» das onze cartas precedentes encontra, já na actualidade, o seu cais. A sombra surge como o lugar do não-lugar, ou seja, como a imagem de uma inquietude que tenta resolver-se, a inquietude de quem se encontra defronte à «inevitabilidade da morte» (p. 27), a inquietude de quem busca a luz primaveril da adolescência ou de quem procura a simplicidade de uma infância onde o conflito não tinha lugar: «Agora, que uma luz difusa me fascina / retenho a idade em que não ousava / fazer do coração um lugar de conflito» (p. 27). Palavra com forte tradição poética, a sombra não é, nestes poemas, o lugar do sonho, do pecado e do crime. É antes o lugar da dúvida, da inquietação, de uma sede ainda por saciar que, só por milagre, não resultou numa «solidão definitiva» (p. 31). Cuidado, então, na leitura destes poemas. Na sua aparente fragilidade residem tumultuosos sentimentos, dúvidas, perturbações, uma boca agrafada de gritos, uma lírica onde a feminilidade não é de todo sinónimo de passiva contemplação.

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