quinta-feira, 26 de julho de 2007

A CAIXA


Adaptado de uma peça homónima de Helder Prista Monteiro (n. 1922 – m. 1994), o filme A Caixa foi rodado entre Novembro de 1993 e Janeiro de 1994, tendo estreado em Novembro deste mesmo ano. Curioso o facto do desaparecimento do autor do texto coincidir com o ano de estreia do filme. Manoel de Oliveira nunca escondeu ter este filme resultado de uma proposta de encenação da peça, recusada por se sentir o cineasta mais à vontade atrás das câmaras. No entanto, o filme está montado como se de uma peça se tratasse. Servem de palco as escadinhas de São Cristóvão, à Mouraria, onde se retrata um bairro que tem tanto de tipicamente português quão portuguesa é a fatal pelintrice em que vivemos. Coincidência ou não, por essa altura era Lisboa Capital Europeia da Cultura. A ironia, de braço dado com a tragédia, caía que nem ginjas. Mais uma vez, o lado provocador de um cineasta que nunca voltou costas à polémica. Um cineasta, também ele, com um apurado sentido irónico, bem mais presente nos seus filmes do que é hábito sublinhar. Abençoadas pelo relevo de São Cristóvão, ao alto das escadinhas onde se desenrola toda a acção do filme, as personagens de A Caixa lembram-nos um país que vive de expedientes e de biscates, o país dos subsídios, dos favores, da pedinchice. Lembram-nos também o país dos coitadinhos, da tadinhice, o país diminutivo, chico-esperto, ditado pela moral do arranjinho, tragicamente entregue à sorte do destino. É o Portugal faduncho, mesquinho, invejoso, que sobe e desce aqueles degraus ao som da Dança do Sabre, de Aram Khachaturian, como quem encerra a vida naquele gesto de subir e de descer. Aquele Portugal e aquela Lisboa que andaram pelos versos de O’Neill, não por acaso evocado na voz de uma vendedeira de tremoços (Isabel Ruth) que trauteia o fado Gaivota. No centro das atenções, uma caixa de esmolas. O direito a possuir e a viver de uma caixa de esmolas, que todos cobiçam e reclamam enquanto se queixam da vida, do tempo, do clima, dos outros, enfim da mudança de hábitos e costumes. Não somos nós do país onde dantes é que era bom? Luís Miguel Cintra, num que é, sem dúvida, um dos seus melhores papéis de sempre, encarna o cego da caixa. Rende para ele, para uma filha e para o pelintra do genro. A filha ainda trabalha, passa a ferro os lençóis de uma pensão, trata do pai e do marido. O genro dorme, conversa, pensa em modos de se ir safando. Porque é isso que importa: ir-se safando. Os vizinhos rodam o cego e gabam-lhe a sorte, também queriam ter uma caixa. Ele assegura o monopólio do negócio lembrando o evidente aos que o invejam: «Vomessê não é ceguinha». Ser cego, naquele contexto, é uma bênção. Talvez de São Cristóvão. Não se vê a merda do mundo, inspira-se caridade, pode-se viver sentado a ver passar, para cima e para baixo, quem trabalha, quem corre, quem se entrega à Dança do Sabre. Pode-se viver sentado a apreciar as turistas americanas que param, olham, não entendem a paisagem. A caixa é roubada. Há sempre um pobre mais pobre que o pobre. Não admira. Todos a invejam, todos invejam a esmola. É um bom negócio. Acaba o caso em tragédia, com o genro preso, na sequência de uma rixa, e o cego morto, fugindo à ameaça do asilo. Parábola de um país, onde todos são inocentes, onde ninguém tem culpa de nada, metáfora de um povo, sempre de mal com os outros, queixoso, incapaz de tomar nas suas próprias mãos os males de se estar vivo. Não há moralismo neste filme. Há antes uma saudável confusão entre vários aspectos morais que tingem as personagens: ora afectuosas, ora perversas; ora sóbrias, ora exaltadas. Vejam-se os casos do dono da taberna, da vendedeira, da puta (uma Sofia Alves lindíssima, que anda hoje sabe-se lá onde), do guarda-nocturno alcoólico. É nestas personagens aparentemente banais, quotidianas, que Manoel de Oliveira, na base da peça de Helder Prista Monteiro, encontra alguns dos conflitos essenciais que caracterizam o nosso povo. Caracterizam-nos numa toada de tragédia grega, é certo, mas sem qualquer tipo de dualismo ou maniqueísmo ético que poderia tingir de inocência as sortes da culpa. Porque, desta feita, seria desnecessário reflectir. Basta mostrar. O filme termina com a filha do cego, transformada numa santa, a viver à custa das esmolas que a sua trágica história rende. Desta feita, é a vendedeira a gabar-lhe a sorte, enquanto ela, de caixilho pendurado ao pescoço, distribui presentes pela vizinhança. Mas logo remata: «Ê cá na tenh’estória». Um país de ludibriados, é o que somos. E não há meio de sairmos disto. Ainda se tivéssemos uma caixa.

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