segunda-feira, 15 de outubro de 2007

CONTOS DE SÃO PETERSBURGO

Contos de São Petersburgo, de Nikolai Gógol (1809-1852), é o sétimo título da Colecção Biblioteca de Editores Independentes, uma iniciativa que reúne as editoras Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D’Água, com o objectivo de colocar no mercado grandes obras, em formato de livro de bolso, a preços convidativos. De Gógol tinha lido apenas o Diário de Um Louco, editado na Colecção Gato Maltês, da Assírio & Alvim, tal como outros quatro dos seis contos que compõem o volume aqui em causa: Avenida Névski (1834), O Retrato (1841), O Nariz (1836), O Capote (1841). Nota introdutória informa-nos de que o conto A Caleche não faz parte do acervo comummente denominado de «Histórias de Petersburgo», tendo sido acrescentado «por estar muito próximo destas histórias petersburguenses, no tempo e no espírito». Talvez mais no tempo que no espírito, dado tratar-se de um conto de pendor humorístico bem distante da genialidade dos restantes. Ao ler estes contos, lembrei-me frequentemente de Elmyr de Hory, o famoso falsificador de arte húngaro que Orson Welles imortalizou no filme F for Fake. Já depois da sua morte, as falsificações de Elmyr de Hory granjearam tal admiração, espanto e valor que são hoje, elas próprias, alvo de falsificações. Gógol não é propriamente um mestre da falsificação, mas tem tudo para ser um grande ilusionista da palavra. O ilusionismo, neste caso, assume duas vertentes: a de uma realidade sabotada por elementos fantásticos e a de um fantástico minado pela parca plausibilidade dos argumentos. «É assim na nossa santa Rússia: tudo está contaminado de imitação, cada qual imitando e macaqueando o seu superior» (p. 272) – escreve Gógol em O Capote. Directamente relacionada com esta arte de iludir e de imitar, vem à superfície nos contos de Nikolai Gógol uma outra dimensão. Refiro-me à mestria com que o autor discorre sobre as ilusões elas mesmas, transformando os seus contos numa espécie de reflexo das grandes ilusões do seu tempo, com «o clima petersburguense» em plano de fundo, algumas das quais são, para mal dos nossos pecados, também as grandes ilusões do nosso tempo. No conto intitulado Avenida Névski, por exemplo, o que parece ser um elogio da famosa avenida de São Petersburgo descamba, no final, numa denúncia dos enganos, das aparências, da superficialidade que contaminam o viver urbano. A avenida é retratada como uma espécie de símbolo do culto do supérfluo e da efemeridade, características essenciais das modernas sociedades de consumo. Começa assim: «Não há nada melhor do que a Avenida Névski, pelo menos em Petersburgo; ela é tudo para esta cidade. Não há esplendor que não brilhe nesta artéria, beldade da nossa capital!» (p. 19) Este aparente elogio, termina, como dizia, assumindo o esplendor da sua ironia no início do último parágrafo: «Os casos mais estranhos, porém, são os que acontecem na Avenida Névski. Oh, não confiem nesta Avenida Névski! Eu, quando deambulo por ela, agasalho-me sempre o melhor possível na minha capa e tento não olhar para os objectos que encontro. É tudo engano, é tudo sonho, nada é o que parece!» (p. 68) Da mesma ironia se matiza o conto O Retrato, ecoando, aqui e acolá, o mito de Fausto. O carácter extraordinário das situações coloca os personagens num plano intermédio, entre o sonho e a realidade, para fazer explodir nas suas acções os vícios de uma sociedade entregue ao aparente: vaidade, inveja, arrivismo, avareza, agiotagem, ambição, pretensiosismo, etc. Esta justaposição de planos atinge as raias do absurdo em contos como Diário de Um Louco e O Nariz - «Grassa neste mundo o absurdo completo» (p. 235) -, este último, muito provavelmente, um dos melhores contos alguma vez escritos. Em O Nariz o ambiente chega mesmo a ser o de uma comédia sarcástica, com motivos de terror, onde o desenlace não acontece senão pela assunção do próprio carácter inverosímil da história, colocando-se o autor no centro da sua ironia: «Mas o mais estranho, o mais incompreensível é haver autores que escolham semelhantes argumentos» (p. 238). Algo semelhante sucede em O Capote, com o fantasma de um funcionário tão zeloso e esmerado quanto explorado a atormentar as ruas de Petersburgo, onde tudo «se funde e mistura na nossa cabeça de tal forma que é difícil extrair dela alguma coisa de jeito» (p. 265). A tradução é de Nina Guerra e Filipe Guerra.

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