1646 é o ano do nascimento de um dos mais arrebatadores filósofos de sempre, de seu nome Gottfried Wilhelm Leibniz. Autor de uma obra especialmente focada nas grandes questões da filosofia do conhecimento, Leibniz foi dos primeiros, no seu tempo, a tentar uma síntese entre os pensamentos clássico e moderno. Não temendo o paradoxo, reabilita alguns conceitos da filosofia antiga ao mesmo tempo que procura conciliá-los com o racionalismo cartesiano. A este respeito é curioso notar que, muitos anos antes de António Damásio, foi Leibniz quem denunciou primeiro, embora em contexto diverso, um “memorável erro de Descartes”. Será na sequência da descoberta desse “memorável erro” que formulará a sua monadologia, um sistema metafísico que assentará, muito simplificadamente, no princípio de que tudo o que existe é um conjunto de mónadas (microcosmos que expressam individualmente o universo inteiro). A questão mais polémica desta metafísica monadológica será a da relação das mónadas entre si, que Leibniz procurará resolver falando de uma harmonia preestabelecida (como dois relógios que são previamente construídos de modo a que concordem sempre no tempo). Deste modo, segundo Leibniz, Deus (o ser necessário que é fonte de tudo o que é) escolheu, entre os muitos mundos possíveis, o mundo mais perfeito. Voltaire, que nasce a 21 de Novembro de 1694, crescerá num clima de difusão das teorias de Leibniz, mas não se conformará com elas, talvez porque a sua experiência pessoal lhe demonstrou ser o mal tão inegável quanto o bem. De facto, como nota Victor Oliveira Mateus na introdução a esta sua tradução de Cândido – acompanhada, refiro-o já, de 163 preciosas notas de rodapé -, é contra as teorias de Leibniz, mas também de Wolf, que «o Cândido se ergue». Jovem educado na crença de que vivia no melhor dos mundos possíveis, Cândido cedo reparará ser muito questionável esse melhor dos mundos possíveis. Em trinta breves capítulos, Voltaire oferece-nos uma sátira onde, sem grandes preocupações de veracidade mas com agudo sentido irónico, o mundo é (re)desenhado com os tons negros que lhe conferem, em contraste com as cores claras, uma representação menos paradoxal mas, curiosamente, mais credível. Expulso do castelo onde vivia, por culpa de um amor proibido, como expulsos haviam já sido Adão e Eva do paraíso, Cândido partirá para um sem fim de aventuras pelo mundo, onde se inclui uma célebre passagem por Portugal à época do terramoto de 1755, que lhe permitirá um conhecimento mais "realista" do mundo em que vivemos. Na relação com as personagens que vai encontrando pelo caminho, processa-se em Cândido uma curiosa transformação que podemos sintetizar recolhendo as características que Voltaire vai atribuindo a este jovem do início ao fim da sua saga: inocência, modéstia, ignorância, compaixão, remorso, desespero, desnorteio, estupefacção, melancolia, infidelidade, aturdimento, choque, «dividido entre o júbilo e a dor». Da inocência a esta divisão, Cândido descobre ser o melhor dos mundos possíveis um mundo muito variado. A conclusão desta viagem talvez nos pareça demasiado simplista, mas não deixa de impressionar ainda hoje pela pertinência e pelo realismo de Voltaire: «o que é preciso é cultivar o nosso jardim». Em suma, deixemo-nos de metafísicas, de grandes teorias, ocupemo-nos, cada qual à sua medida, do trabalho que dá cultivar o nosso jardim. Há sempre muito a dizer sobre este Cândido de Voltaire, provavelmente tão cândido nas conclusões a que chegou quão o seria antes da expulsão do castelo onde foi educado. É que hoje sabemos ter sido este elogio do trabalho também ele não um pretexto para tornar a nossa vida mais suportável, mas uma outra forma de suportar o mundo em que vivemos pela renúncia do pensamento, do espírito crítico, do inconformismo - tudo aquilo que Voltaire, provavelmente, não desejaria. Que Voltaire encontre a solução no trabalho não se pode senão compreender à luz do seu tempo, pois que à luz do nosso essa solução transformou-se num dos principais problemas. Que mundo é então este em que o trabalho nos amordaça, nos impede de viver, nos obriga a curvar perante os mecanismos sustentadores da sociedade consumista, usurpando-nos o tempo, inclusive, para lermos atentamente, como deveriam ser lidos, autores fundamentais, chamem-se eles Leibniz ou Voltaire?
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