A antologia Contos de algibeira, organizada por Lais Chaffe, é o terceiro volume da Série Lilliput, que a Casa Verde tem vindo a publicar desde a sua fundação em 2004. Os primeiros volumes desta série foram Contos de bolso (2005) e Contos de bolsa (2006). Antes de mais, importa esclarecer que a Casa Verde é uma espécie de associação de escritores gaúchos cujo objectivo editorial, com especial incidência na micronarrativa, é apenas um entre os demais. São parte integrante da casa os escritores Caco Belmonte, Christina Dias, Filipe Bortolini, Laís Chaffe, Luciana Veiga, Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Spalding. Neste simpático terceiro volume da Série Lilliput a novidade consiste na reunião de autores portugueses e brasileiros. Menos os de cá (cerca de 35), mais os de lá (70, se bem contei). A diferença é não só compreensível como justificável, se tivermos em conta o facto por demais evidente de há muito se cultivar no Brasil esse género que, entre nós, permanece algo obscuro e desprezado. Ainda assim, sabe bem observar nomes como os de Gonçalo M. Tavares, João Pedro Mésseder, Joel Neto, Paulo Kellerman ou Rui Zink, entre outros, com mais ou menos obra publicada, com mais ou menos visibilidade, com mais ou menos passos dados no agreste caminho das letras. Perante a diversidade, é normal que alguns textos nos interessem mais que outros. Soube-me bem verificar, por exemplo, que alguns autores conseguiram fugir com mestria ao fragmento anedótico. É verdade que, na maioria dos casos, o humor permanece a solução mais fácil e a graça o objectivo mais almejado; mas também não deixa de ser verdade que, noutros casos, esse humor atinge contornos negros, deixa-se contaminar pela ironia e algum cinismo, logrando assim a micronarrativa efeitos que ultrapassam já o da mera anedota. Felizmente, poderia dar mais que um exemplo. Cingir-me-ei, no entanto, a este enigmático § de Rafael Mota Miranda (n. 1984): «houve um tempo em que morríamos por escrito, lembras-te? em que matávamos com um ponto bem gravado da esferográfica no final da frase. trocávamos carícias entre vírgulas. bem sei. arredondávamos dúvidas, erguíamos espadas em resposta. hoje já não morremos por escrito. para isso, bem o sabes, era preciso que estivéssemos vivos» (p. 43). E se nos é possível afirmar que este texto se aproxima do poético, mais interessante ele se torna, precisamente, por arriscar o extravasamento das fronteiras que, geralmente, separam a narração da poesia. O mesmo sucede, a título de exemplo, com o texto Sophia, que o brasileiro Edson Cruz (1959) dedica à sua filha Sophia Miki: «O verdadeiro sábio diria que há caminhos no céu que só os pássaros conhecem, e como eles sabem se guiar, sem trombadas, a não ser quando um helicóptero os estilhaça em pleno vôo; o sábio realmente diria que há trajectos nos mares manjadíssimos pelos peixes, que sempre vão aonde desejam, se é que peixe deseja alguma coisa; peixe não chora, vocês já repararam?, embora alguns poetas em seus tankas vislumbrem lágrimas nos olhos dos peixes, mas que eles sofrem, sofrem; talvez, não mais do que nós, que não conhecemos caminhos nos céus, nem nos mares, muito menos na terra, a não ser aqueles caminhos manchados de sangue de nossa triste história recente e sem fim» (p. 74). Ora, quer-me parecer, estes dois exemplos são suficientes para demonstrar que de anedotário este Contos de bolso pode apenas receber parte da sua caracterização, não a melhor ou a pior, não a mais ou menos digna, mas apenas parte, pois o conjunto é suficientemente diverso para que não caiamos na tentação demasiado simplista de apelidar de anedota o que não busca a graça. É que, chegados a este ponto, já nem deveria merecer discussão aquilo que distingue, no osso, o riso da graça. O riso é sempre um desafio, atinge-nos no âmago da nossa ambivalência. Por isso lhe chamavam satânico. Já a graça é matéria de espírito, pode, sem dúvida, armadilhar-nos o próprio riso, quando o torna inócuo e insignificante. Talvez isso explique que nem sempre o que faz rir tenha graça, embora nos atinja sempre os nervos como uma energia incontrolável.
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