segunda-feira, 21 de abril de 2008

O ESPELHO ATORMENTADO

Do norte-americano Russell Edson (n. 1935) encontrava-se disponível em língua portuguesa, se não estou enganado, apenas uma brevíssima selecção dos seus poemas em prosa intitulada O Túnel (Assírio & Alvim, 2002). Nesse pequeno volume, o tradutor, também ele poeta, José Alberto Oliveira introduziu algumas coordenadas para a compreensão desta poesia: os poemas de Edson são fábulas bem humoradas e inquietas que contam histórias com desfechos absurdos. O riso é, sem dúvida, uma das características mais evidentes na poesia de Russell Edson. Autor de um romance e de mais de uma dezena de livros de poemas em prosa, estreou-se em 1961 com Appearances. Em 1994 editou The Tunnel: Selected Poems e em 2000 apareceu The Tormented Mirror, uma colectânea de poemas anteriormente publicados em variadíssimas revistas que a OVNI disponibiliza agora em tradução bilingue. A responsabilidade da tradução é de Guilherme Mendonça. Traduzir Edson não é tarefa fácil, sobretudo por tratar-se de um autor com um uso muito particular da linguagem, repleto de jogos de palavras, alusões, trocadilhos, onde os planos da realidade e do onírico aparecem frequentemente confundidos. Diz-se desta obra ser algo pendular, talvez porque nela vislumbremos a omnipresença de tensões diversas. Desde logo, no plano formal, a afirmação destes textos enquanto poemas, mesmo tratando-se de poemas em prosa, não pode senão ser motivo de discussão. Não andará longe da verdade quem ouse chamar-lhes fábulas, estórias ou, fazendo uso de termos mais em voga recentemente, micronarrativas. No contexto da literatura norte-americana, trata-se, então, de poesia em prosa, o que, provavelmente para espanto daqueles que julgam serem os preconceitos literários tipicamente nossos, tem resultado numa certa marginalização desta obra por parte da comunidade académica. A essa marginalização Edson responde com simplicidade e inteligência: «Being, as you suggest, somewhat of a hermit, I've never thought of myself as marginal or mainstream, just happy to be writing». Há também aqueles que falam de Russell Edson como um dos mais importantes cultores do poema em prosa nos Estados Unidos da América (do Norte). A sua importância advém da sua singularidade, a qual parece por vezes devedora de um certo surrealismo menos automático mas amplamente enraizado nos domínios do inconsciente. É curioso, a título de exemplo, que mesmo quando se afirmam mais bizarras, as estórias de O Espelho Atormentado dialogam com referências muito concretas da vida quotidiana, trabalhos, paixões, desavenças, dificuldades da vida doméstica. Chamo-lhes estórias não inadvertidamente. O próprio afirma: «All writing is storytelling». O que nos contam, então, as estórias deste espelho atormentado? De um modo cómico, quase sempre efabulatório, não dispensando um certo wit, com bastante engenho na recusa da sátira, estas estórias contam-nos de elefantes com vergonha de roupa interior, de intricados laços genealógicos entre macacos, de casamentos entre galos e vacas, de um cavalo que aprendeu a montar outros cavalos, de um velho elefante de barbas brancas, de um Ciclope que precisa de óculos, de um papagaio que falava de si próprio na terceira pessoa, etc. Mas nos quatro conjuntos de textos coligidos em O Espelho Atormentado não são apenas os animais que falam. O núcleo de acção é diversas vezes o núcleo familiar, noutras ocasiões a estória desenvolve-se em torno de mutações físicas que instalam um paralelismo agradável com as próprias mutações da realidade convertida em texto. Uma escrita surreal, talvez, deveras fascinante na forma como agrega os planos da realidade e da ficção, na arte com que torna lógico o absurdo enviando-nos para o absurdo da lógica durante, por exemplo, a hora d’O Banho: «Um homem estava a tomar banho numa banheira de molho de peru; a pôr um patinho amarelo a boiar para passar a eternidade. Comia puré de batata, mergulhava no banho grandes garfadas… / Uma beleza, tudo aquilo, pensou, eu num ensopado com um pato, a comer puré de batata com molho, e lá fora um mundo completamente louco… (p. 157)»

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