sexta-feira, 16 de maio de 2008

AÇO E NADA

As crónicas de Aço e Nada (Brasil, 2007) foram publicadas entre Fevereiro e Março de 2007, no jornal A Notícia (Joinville, estado de Santa Catarina). Poderiam ter ficado por ali esquecidas e abandonadas, não fosse o zelo do seu autor, Rubens da Cunha (n. 1971), que em boa hora resolveu guardá-las no regaço confortável de um livro. Três conjuntos de textos, aproximados no tom mas diversos na forma, prefaciados por Carlos Sousa de Almeida: «Partindo, amiúde, da insípida banalidade, e a arte é, antes de tudo o mais, isso mesmo, as crónicas de Rubens da Cunha dão sabor de ficção ao real, explorando os canais de emoção do leitor para neles se instalar». Já iremos à insípida banalidade. Para já, cabe lembrar que a crónica é sempre um género ingrato. Exige do autor um olhar vigilante, ao mesmo tempo desnudado, raramente merecedor de uma fixação que a previna da inflexível fogueira do esquecimento. Porque é escrava dos dias, a crónica apenas sobrevive quando logra apreender dos dias os pormenores esquivos que estão diante de todos mas só não passam despercebidos ao olhar garimpeiro do cronista. Por isso há sempre uma ambiguidade implícita nos tempos da crónica. Mesmo quando assume uma atitude mais reflexiva, ela não se livra dos preconceitos do seu tempo. Está dependente da actualidade, germina no ventre da actualidade, ainda que não se circunscreva a essa mesma actualidade. Se sai bem, irrompe desse terreno tão fértil quão delicado - como uma árvore de fruto. E ao longo dos tempos os frutos irão amadurecendo. O cronista sabe que pouco mais lhe resta do que amanhar a terra com as palavras, a ferramenta do seu ofício, semear perspectivas, indagações, breves apontamentos lunáticos, pulverizar as árvores com o veneno da poesia e esperar que os frutos surjam, pelo menos, com um aspecto desejável, apetitoso, se possível cativante. É pois na insípida banalidade dos dias, na monotonia quotidiana, no ramerrão que marca o ritmo das gentes, que o cronista planta as suas árvores e, paradoxalmente, colhe os seus frutos. Porque da insípida banalidade fazem parte tanto aquele que escreve como quem é escrito. Encanta nas crónicas de Rubens da Cunha a forma como consegue distanciar-se dos outros sem separar-se deles. Há uma atitude muito frequente em certos cronistas contemporâneos que é a de se afastarem esquizofrenicamente do mundo em que vivem e passarem a ver a realidade como se esta fosse um planeta girando em torno da luminosidade que irradiam. Esta atitude não é a do autor de Aço e Nada. O afastamento é um afastamento para dentro, uma aproximação do olhar aos pormenores, um aumento da objectiva a ponto de conseguir perspectivar já não apenas o banal mas os inusitados. Sendo a vida feita de aparência, o que estas crónicas buscam é o inaparente. Não que estejam crentes da existência desse inaparente, mas, pelo menos, conseguem iludir-nos quanto à existência de gestos que não sejam automáticos, situações que não sejam previsíveis, pessoas que não sejam triviais (quase sempre aquelas para as quais ninguém olha). E tudo isto é realizado com saudável ironia, nenhuma autocomplacência, uma enorme capacidade de espanto. Deste modo, é frequente a crónica resultar numa espécie de poema em prosa, num conto, numa colectânea de micronarrativas, onde o inédito é resgatado, fixado, apontado. Referindo-se à figura do poeta, Rubens da Cunha afirma não saberem aqueles que o criticam ser vasto e cansativo o trabalho de observar. É este trabalho de observar o quotidiano, a arquitectura das relações humanas, a inexplicabilidade de alguns factos, que vem à tona nas crónicas de Aço e Nada. Olhar vigiador, pois então, como no título de um dos três conjuntos aqui coligidos. Mas um olhar delicado, crítico mas não críptico, equilibrado na forma como conduz o leitor e capaz de revirar a terra para dela colher o alimento mais deleitoso.

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