domingo, 20 de julho de 2008

PORTO


De guarida no estúdio da Tulipa, com vista para o Douro e para uma escola de strippers, regressei à invicta das gaivotas em transe, dos gatos vadios, das varandas curvadas, das ruelas obscuras. Regressei devoluto ao Porto moderno, aportei moderno no Porto devoluto. Arrancada: sopa de feijão verde, cenoura e courgette, acompanhada de broa de Avintes e vinho verde gelado. No Centro Português de Fotografia, Virgílio Ferreira expõe peregrinos desfocados numa urbe iluminada por lâmpadas fluorescentes. Onde outrora o sol nascia, encontramos agora uma noite de perfis anónimos e nublados. Um passeio por Banguecoque, Macau, Hong Kong, Pequim, Xangai e Tóquio a lembrar o estranho lugar do amor filmado por Sofia Coppola. Do Curso Superior de Fotografia do Instituto Politécnico de Tomar, uma mostra excepcional de trabalhos realizados pelos alunos do 1.º ao 3.º anos do curso. Artistas em construção, edifícios novos, encenados ou espontâneos, ainda com muito decoro na técnica mas a revelarem uma prometedora audácia. Igualmente audaz é o negócio da Utopia. Aguenta-se, ali escondida junto ao quartel da Praça da República. Aproveito para comprar Lacrimae Rerum, de Slavoj Zizek, que começo a ler com alguma desconfiança depois de ter visto uma dúzia de putos a praticarem pesca submarina em plena Avenida dos Aliados: «a ficção é mais real do que a realidade social de representar papéis»? Dúvidas que voltam a assolar-me quando ouço Janis Joplin na Ribeira ou o poema preferido da Marlene Dietrich num festival a decorrer no outro lado do rio. Deito-me com o gato Narciso a fazer-me cócegas nos pés e uma melodia na cabeça: «A strange kind of love / A strange kind of feeling / Swims through your eyes».



A peregrinação continua. Feijoada de legumes com camarões, vinho branco. Gosto daquela mistura de cogumelos, brócolos, feijão preto e malaguetas a sacar um ardor que apenas com mais ardor se mata. Passeio de eléctrico da Ribeira à Foz, ou quase, seguido de caminhada até Serralves. Pelo caminho, mendigos, muitos edifícios devolutos e barcos abandonados, contrastam com espaços comerciais desenhados como mandam as leis do design. Dou, por mero acaso, com a Fundação Eugénio de Andrade. Que o poeta tenha passado os seus últimos dias no Passeio Alegre deixa-me consolado. Um passeio alegre é sempre um belo lugar para um poeta passar os seus últimos dias. Olho a inactividade daquele edifício como quem olha uma paisagem existente apenas na forma como cada um olha as coisas, uma paisagem subjectiva, inerente ao próprio olhar. Sigo assim caminho, embora ainda antes de chegar a Serralves um monumento ao esforço colonial português me tenha desdobrado as vistas. Ficção, realidade, documentário, cinema? Deixa-me cá explorar essa tal «tensão dialéctica entre realidade documental e ficção» na poesia de Manoel de Oliveira. Paro os olhos em Douro, Fauna Fluvial, embora com o pensamento estancado nos cínicos. Nem de propósito, acabo a rever aquela cena inesquecível de A Caça: um homem afunda-se lentamente num pântano, forma-se um cordão humano com a intenção de o salvar; os elementos desse cordão começam a discutir uns com os outros, dividem-se, esquecem-se do homem a afundar-se no pântano; excepto um maneta, que o acode enquanto grita por uma mão solidária. As árvores do jardim de Serralves são como aquele maneta. Só delas podemos esperar alguma atenção enquanto nos afundamos no pântano da realidade. Já desprotegido das sombras, segue o peregrino na direcção da noite. Francesinha no Taipas e Feijões, muito vinho, Smack My Bitch Up.



Quero dizer-te que fiquei durante alguns minutos só a olhar para a salada. Na companhia dos gatos, fiquei durante alguns minutos a escutar os diálogos, a observar as relações entre o tomate e a melancia, o ovo cozido e o ananás, a alface e o resto do mundo. Fiquei ali durante alguns minutos a pensar como tudo poderia ser mais belo se fosse mais simples, como tudo poderia ser mais simples se fosse mais belo. E foi assim que me pus a andar sem destino algum, simplesmente por andar a caminho de qualquer coisa, o que fosse, que pudesse ser simples. Dei alguns passos decadentes, visitei sinagogas desaparecidas, subi à Sé, desci à Ribeira, entrei em tascas imundas, visitei mercearias e profissões em vias de extinção, outras cada vez mais recorrentes, fui sempre junto ao rio até poder voltar a subir para lá das margens. Como se o meu corpo fosse a duna que se levanta para lá das margens. Quando nos predispomos a não querer, encontramos sempre o que nunca procurámos. Mais correcto será dizer que somos achados por quem nunca nos procurou: quando queremos andar só por andar, a observar não quem pretendemos que nos observe, mas a observar os nossos próprios movimentos na direcção de um nada que, súbita e inesperadamente, se transforma em tudo o que verdadeiramente importa. E tudo o que verdadeiramente importa é a dor que se desembaraça do corpo com outra dor ainda maior. O nosso corpo, assim aliviado dos relógios e dos mapas que o guiam quotidianamente, pressente nos acasos um diálogo simples e belo entre a liberdade que dá forma ao caos e o desejo que o contamina de uma ordem sempre muito pessoal. Descanso na Gato Vadio como um vadio sem pêlo, desnudado para fora da t-shirt suada, para dentro de duas cervejas pretas e das 535 Máximas 535, de Eastwood da Silva: «anda o mais possível a pé». E come farturas, e bebe cerveja, e fuma cigarros, e grita pelo Jim Morrison, e canta aquela velha canção: «sometimes, when I look deep in your eyes, I swear I can see your soul».

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