domingo, 9 de novembro de 2008

SILÊNCIOS ENTRE NÓS

Silêncios Entre Nós é o terceiro volume de estórias que Paulo Kellerman (1974) publica na Deriva. Os anteriores foram Gastar Palavras (2005, Grande Prémio de Conto "Camilo Castelo Branco" C.M. de Vila Nova de Famalicão / APE em 2006) e Os Mundos Separados que Partilhamos (2007). Termino a leitura de Silêncios Entre Nós e penso que os três livros, em conjunto, formam uma interessante trilogia sobre as relações humanas no mundo contemporâneo. A ligá-los, além da temática, o facto não menos curioso de todas as obras nos remeterem para diálogos com pinturas de diversos autores. São vários os nomes de artistas evocados desde o primeiro livro desta trilogia informal: Eric Fischl, Edward Hopper, Edvard Munch, Tamara de Lempicka, Vincent van Gogh, Ana Reis, Edgar Degas, Marc Chagall, Andrew Wyeth, Pierre Bonnard, Alberto Sughi, Ernst Ludwig Kirchner, Henri de Toulouse-Lautrec, Andrew Valko, Kenney Mencher e Mark Rothko. O leitor dos contos dificilmente se aperceberá da presença dos quadros nos retratos agora desenhados com palavras. Não fossem os mesmos referidos à entrada de cada uma das colectâneas, nem disso nos aperceberíamos. Mas eles estão lá, dando respiração ao manto narrativo que Paulo Kellerman traça com destreza e subtil complexidade. Ao contrário do que possa parecer, os ambientes destas estórias não são intrinsecamente quotidianos, não podem ser cingidos a meras descrições naturalistas de uma realidade entediante, repetitiva, nauseante, banal. O que há de surpreendente nestas exposições da banalidade é a capacidade de arrancar à previsibilidade da vida íntima, nomeadamente da vida a dois, da vida dos casais nas sociedades contemporâneas, mas também da vida social, arrancar-lhes, dizia eu, aqueles elementos que passam despercebidos, ocultados pelas máscaras com que orientamos a vidinha e arrepiamos a verdade. Os contos de Kellerman tornam audível o silêncio, rasgam a intimidade e mostram-nos sem qualquer tipo de pudor existencial. Não se impõem pela forma abrupta da exposição, não pretendem chocar pelo lado abjecto nem impressionar com relatos, tantas vezes folclóricos, da vida supostamente íntima, a chamada vida sexual tantas e tantas vezes reduzida a uma única das suas dimensões: a da foda. Para lá da foda há intimidade, aquela intimidade que nos força e que forçamos, a mesma que nos comanda os gestos mais disparatados, aquela intimidade que Somerset Maugham dizia poder arrasar-nos caso fosse posta a descoberto. É precisamente isso que Paulo Kellerman faz com as suas estórias, põe a descoberto a intimidade, a tal voz do silêncio, das pessoas comuns, mostra o ódio que pode esconder-se por detrás de uma declaração de amor, a animalidade que tantas e tantas vezes se dissimula em actos supostamente humanos, a velocidade do coração nos arrebatamentos que, porque fica mal, desaceleramos à vista dos outros. O tédio, a repetição, a previsibilidade, são apenas o ar que se respira sobre um solo bem mais complexo do que aparenta. Isso fica muito claro nas quinze estórias de Silêncios Entre Nós. E repare-se na ironia. Num título marcado pela ausência de som dificilmente anteveríamos contos estigmatizados pela amiúde chamada de diversos ruídos: «escuto o silvo da tua respiração» (p. 5), «ouço os teus passos, afastando-se; uma breve tosse; e, pouco depois, o silvo do computador; o teclar frenético; um suspiro inconsciente, tão revelador» (pp. 11-12), «o ruído da sirene parece particularmente lúgubre» (p. 15), «o ruído da sirene já faz parte de mim» (p. 17), «ruído do elevador a parar, a porta que se abre» ou «olho para a televisão mas concentro-me nos ruídos animalescos que fazes» e «ouço-te mastigar: e angustia-me este excesso de despudor, este abuso da intimidade» (p. 20), etc, etc, etc… E note-se ainda como tantos e tantos destes ruídos servem como revelações inconscientes e involuntárias da intimidade, como se aquilo que escondemos, recalcamos, controlamos, subitamente fosse traído por «um leve arroto», um assobio, um rádio que é ligado para «desligar a intimidade». É precisamente esta a imagem da estória que ofereceu o título à colectânea: alguém que desliga a intimidade, a proximidade, com um gesto tão simples, aparentemente indiferente, como ligar o rádio sempre que entra no carro com alguém a seu lado. Algumas destas estórias não chegam a atingir meia página. Recusam o facilitismo das tão vulgarizadas punch lines, das tiradas de humor quase sempre óbvio e de gosto sofrível. Evitam o caminho mais fácil. Isso é, quanto a mim, bastante louvável.

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