Volto-me para Oriente. É um fascínio antigo motivado pelo mais ingénuo dos espantos. Seja. Nada haverá de muito diferente onde a terra for calcada por corpos humanos. Ainda hoje diziam na rádio que o homem é o único animal consciente de que vai morrer. Diria antes que o homem é o único animal que se julga o único animal consciente de que vai morrer. Esta consciência, numa e noutra versões, faz toda a diferença. Volto-me então para Oriente sem grande esperança, procurando talvez na força dos elefantes a dança de Xiva («ele personifica o Absoluto como potência dinâmica por excelência»). Fui um falhado praticante de yôga. O gozo dos vícios sobrepôs-se à disciplina do corpo (pessoalmente entendido como uma totalidade sem fracturas expostas). Os meus mestres são os poetas. É na poesia que encontro, colho, realizo (no sentido de cultivar) o fruto de uma liberdade superior, Sem sacrifício nem abnegação que não sejam os de um permanente desejo de me apagar, de me fazer esquecer. Há treze anos a Relógio d’Água publicou a tradução portuguesa de um livro indispensável, fruto maior do trabalho de um poeta português que já viu melhores dias. O trabalho de António Barahona neste volume é de uma riqueza impressionante. É o próprio quem informa tratar-se a Bhagavad-Guitá de um episódio do Mahabharata, grande epopeia da tradição hindu fixada algures no séc. VI a.C. De um ponto de vista filosófico, o que me interessa neste alimento de dificílima digestão – não pela pouca qualidade, mas pela complexidade – é o sentido de uma batalha travada no interior da mente de um herói assolado por dúvidas, hesitações, súbitos momentos de fraqueza e de desânimo. A angústia de Ardjuna, ao travar uma batalha contra parentes seus, é a angústia que qualquer homem sente quando confrontado com as consequências que as suas acções possam provocar nos outros. Os dilemas de sempre são a causa de uma lenta agonia manifestada sob a forma melancólica de uma vivência do tempo que Krixna ultrapassa da seguinte forma: «Aquele que crê que tem poder para matar / e aquele que pensa que também há-de morrer, / não entenderam nada, ambos, e só se enganam, / porque não há ninguém que mate nem que morra. // Ele nunca nasce nem tão-pouco morrerá jamais / nem começou a existir para acabar um dia: / não-nascido e eterno, permanente, antigo-uno, / na verdade, não morre, quando o corpo deixa a vida» (p. 51). Eis desenganado o animal que se julga o único consciente da morte, Uma morte que afinal não passa de patética ilusão. A qualidade da omnipresença deixa de ser atributo divino para passar a ser humano. A nenhum deus cabe o que é nosso. Ponha-se um fim às carpideiras que usam e abusam da temível morte prometendo paraísos improváveis, «tudo aquilo que é inevitável, tu não devias nunca, nunca lamentar». Muitos séculos depois, nem o racionalismo crítico de Kant escapará à mais básica intuição poética de Krixna: «Concentra-te somente na acção / e jamais nos seus frutos: não permitas / que os frutos da acção sejam o teu móbil / nem causa de ficar só inactivo» (p. 59). Que mérito em fazer disto um imperativo moral quando isto, no fundo, não passa da mais sensata das intuições? É verdade que a distinção posteriormente operada entre os sentidos e a mente já não me agrada tanto, nomeadamente ao estabelecer-se uma hierarquia metafísica (sentidos, mente, intelecto, Ele) conspurcada por uma desconfiança do corpo felizmente superada por gente que, usando e abusando da bela carne, logrou alcançar a «paz definitiva». Nenhuma libertação pode dar-se a partir da rejeição do corpo, toda ela se consegue integrando o corpo (o corpo-total) na terra. A palavra purificação causa-me repugnância, assim como o elogio do sacrifício e da austeridade, mas acho que compreendo o seu sentido no contexto de uma entrega à meditação «buscando só refúgio na imparcialidade» (p. 229). No entanto, estou em crer que a verdadeira ascese é para baixo, não é para cima. Talvez venha a desenvolver o tema em próximos capítulos. Para já despeço-me dos espectadores com mais um momento de rara e bela poesia:
Os alimentos que dão vida e mais virtude,
força, saúde, felicidade e alegria,
feitos com óleo e saborosos, bons pró estômago,
tais alimentos são amados pelos sáttvicos.
Alimentos amargos, ácidos, salgados,
secos e quentes, adstringentes e picantes,
que só provocam dor e tristeza e doença,
tais alimentos, os radjásicos, desejam.
Insípido, sem gosto e dum dia pró outro,
deixado após a refeição e já estragado,
este é, por excelência, o alimento impuro,
amado muito intensamente pelos tamásicos.
Nota: «Eis os três gunas, a saber: sattva, a conformidade com a esência pura do Ser (…), representada como uma tendência ascendente, orientada em direcção à intelectualidade metafísica e supra-humana; radjas, a impulsão expansiva, artística, emocional e apaixonada, em função da qual o ser se desenvolve no estado humano (…); tamas, a obscuridade, assimilada à ignorância (…)» (p. 304).
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