Quase a terminar a primeira parte, Helton deixa entrar um cocorocó alto e sonante. De pronto os colegas o confortaram. Jesualdo, o treinador, ergueu-lhe os punhos de mão cerrada como que clamando: força, não esmoreças. Já na segunda parte, Helton volta a ser abraçado pelos colegas mais próximos. No outro lado do campo o Porto empatava a partida, atenuando o erro clamoroso do seu guarda-redes. É a comoção vivida nestes momentos que me aproxima do futebol. O resto interessa-me pouco. Gostaria de ver uma sociedade assim solidária para com o erro, concentrada na vitória, lançada na ambição de um resultado melhor, capaz de passar por cima da depressão, pelo menos, com a mesma força com que a depressão passa por cima de nós. Nada disso vejo. O clima é de bufaria generalizada, denúncia e intriga, o clima é exactamente o mesmo que Eça já denunciava, e Fialho de Almeida cuspia em crónicas azedas de gato assanhado, e Tomás Pinto Brandão satirizava sem dó nem piedade. O clima é o nosso. Tão aprazível nos céus quão desprezível na Terra. Este nosso clima, do qual jamais nos libertaremos, vai sofrendo ligeiras transformações. É fácil reconhecê-las. Mas de um modo geral o ambiente mantém-se de acordo com as mudanças de temperatura. Em Portugal, Hoje: o Medo de Existir, José Gil mais não fez que gritar o clima. O livro foi um sucesso. Pudera! Ao contrário do Helton reconfortado, a generalidade do povo português gosta de se ver espelhado. Gil disse-nos, não deixando que ninguém assobiasse para o lado esse dizer. É verdade que se trata de um livro cheio de defeitos, tal como nós, de um compêndio de análise social sensacionalista sem futuro, inconsequente e completamente inútil para o tempo que resta de jogo. Os portugueses que gostam de bola, entre os quais me inscrevo, compraram o livro, ofereceram-no no Natal, ter-lhe-ão lido as primeiras páginas, adoraram, adoraram, adoraram. Os outros fizeram o que sempre fazem: passearam os penteados nos colóquios, nas conferências, nos debates, escreveram croniquetas sem miolo e outras para mais tarde recordar, deram corda aos relógios e seguiram vidinha pela ala tardia do tenho mais que fazer. Os outros fizeram o que sempre fazem: sublinharam a raiva ao mesmo tempo que espezinhavam o colega do lado, bateram palmas deixando entre as mãos as cabeças dos ofendidos, abriram as bolsas aos encómios, desceram as avenidas de bandeirola na mão, saracotearam-se marcando presença na ausência de sempre. Gil gritou-nos o letargo, a passividade, a resignação, a apatia, a anestesia, a inércia, o autismo, a situação geral de não-inscrição. E entre muito tiro a fazer ricochete, um capítulo que vale a pena sublinhar. Na íntegra. Afinal de que é que se tem medo neste país? A pálida transfiguração do clima que se vive, com buscas, atentados, desrespeitos, suspensões, queixas-crime, telefonemas, apreensões, proibições, sem justificação aparente que não seja a de uma eterna saudade de tempos cabisbaixos (é preciso reler O’Neill), faz de nós, sem dúvida, «os chineses do Ocidente». O povo é sereno, triste lema de uma democracia que transportou para o seu âmago os piores vícios herdados da ditadura. Os portugueses são de brandos costumes, triste lema outro que reforçou em democracia os piores vícios herdados da ditadura. Aí têm, meus caros, o resultado: «brandura, doçura, amenidade». E enquanto tal, o poder a encabar-nos à tripa forra. Quem diz o poder, diz os pequenos poderes, diz todas as formas de poder legitimadas pelas hierarquias sociais com que vamos assegurando a obediência e a submissão da maioria. «A prudência é a lei do bom senso português». Daí que critiquemos em surdina, recorramos ao anonimato, façamos como a avestruz, olhemos por cima do cancro, como se nada fosse connosco. Numa sociedade pobre, de carteira e de espírito, dependente dos pequenos confortos, iludida com as parangonas do sucesso, perder um pouco é perder tudo. Ser despromovido no trabalho, perder o emprego, ver-se renegado, de portas fechadas para o elogio das boas famílias, ver-se, digamos assim, relegado para os planos da inconveniência, e por isso ostracizado, desapiedado, silenciado, ver-se assim abandonado à mercê dos «pequenos déspotas», sejam eles ignorantes agentes da autoridade ou directoras quasi analfabetas, é uma ameaça com a qual dificilmente aprenderemos a viver. Deste medo não nos libertaremos tão depressa. Falta quem nos erga os punhos de mão cerrada como que clamando: força, não esmoreças.
Sem comentários:
Enviar um comentário