A série textos breves, que a Quetzal tem vindo a publicar com apreciável regularidade, colocou-nos recentemente à disposição dois pequenos livros de inquestionável interesse: Os Meus Prémios, de Thomas Bernhard, e Teoria da Viagem – Uma Poética da Geografia (Abril de 2009), do filósofo francês Michel Onfray (n. 1959). Foquemo-nos no segundo. Neste breve ensaio, Onfray começa por estabelecer uma dicotomia ontológica entre o nómada e o sedentário - dois “modos de estar no mundo” que podem ser explicados a partir da raiz que determinou a oposição, nomeadamente se recorrermos à tipologia fundada no Génesis com o episódio que tem por intervenientes o pastor Abel (nómada) e o agricultor Caim (sedentário). É este quem mata o primeiro, podendo aí antever-se uma espécie de inquietação ameaçadora que caracteriza o nómada. Curiosamente, a condenação divina de Caim consistirá em passar o resto da vida a errar pelo mundo. «Génese da errância: a maldição» (p. 12) – conclui Michel Onfray.
Descendentes de Caim são todos os ingovernáveis, os viajantes inquietos, as almas perdidas que o poder não logra integrar por ser mais forte o desejo de partir do que o conforto de assentar. Descendentes de Caim são os corpos associais que se movimentam no mundo de sentidos abertos para experiências novas, assimilando lugares com a mesma urgência com que o corpo assimila o alimento que o mantém vivo. Eis a pior das condenações que pode atingir o espírito gregário da alma aquietada: a errância, a ausência de lugar. Caim acaba fundando a sua cidade, Henoc, a qual pode hoje ser vislumbrada em todas as cidades, autênticos cemitérios de maiorias que se reproduzem nos gestos, nas palavras, nas acções. É preciso, pois, matar Caim, libertar o homem do peso da maldição, desamarrá-lo e deixá-lo vogar à vontade sem mapas nem destino. Os mapas, representações ficcionais e ilusórias do espaço, são a ferramenta de que o homem se dota para disfarçar a sua perdição. Entrar num território desconhecido é experimentar a ruína, é lançar voluntariamente o corpo numa queda da qual há-de regressar (ou não) apenas com a certeza de se ter, ainda que por breves momentos, realizado plenamente.
Acontece que para Onfray o desejo de viajar pressupõe um sonho, a vontade de um registo, até um decepcionante mínimo de orientação: «Todos os viajantes relatam as suas peregrinações em cartas, cadernos, relatos. Apenas um pequeno número quinta-essencia as suas deslocações numa antologia de poemas. (…) Depois do Atlas e o Poema, essas duas formas da sensibilidade a posteriori, é a Prosa que toma a dianteira. Esta exprime de uma outra forma, mais ténue, mais diluída, o que o poeta transfigura em esplendores» (p. 33). O poema ocorre, então, como esplendorosa captação da experiência, talvez por no poema a imagem continuar em movimento, a realidade não acabar fixada, o “redactor” do real se confundir com um leitor da realidade que pode abrir e fechar subjectivamente as portas que bem entender durante a sua deriva. Mas deixemos a memória trabalhar, não a perturbemos com um excesso de indícios e sinais que acabem por barrar a verdadeira “exaltação estética”.
Iniciar uma viagem no momento em que deixamos para trás o abrigo de todos os dias é colocarmo-nos «num entre-dois que remete para uma lógica peculiar: já não estamos no lugar abandonado e ainda não estamos no lugar desejado» (p. 37). São estes por excelência os lugares da poesia. E neles é impossível não notar uma equivalência entre o espaço e o presente, dito na forma agostiniana como aquele que ainda e já não é. Porém, o entre-dois (geográfico) de Michel Onfray remete igualmente para outras realidades. Sugere-se a viagem em companhia, a realização de «uma verdadeira comunidade hedonista» a dois. Este a dois, sabe-o quem estiver familiarizado com a obra do autor da Teoria do Corpo Amoroso, não prevê a ideia tradicional e burguesa de casal. Antes propõe uma caminhada amigável: «A amizade, esse amor sem corpo, gera um uso comum do tempo, do espaço e da energia» (p. 48). Este a dois amigável disponibiliza-nos para “o prazer da alteridade”, não nos amarra a obrigações que possam reduzir uma abertura ao outro, à experiência do outro, que permita “inventar uma inocência”, ou seja, coloca-nos perante o diferente como a criança que não questiona, não como aquele que olha o diferente procurando o igual, mas como aquele que se procura na diferença.
Eis a conclusão: «Uma poética da geografia pressupõe esta arte de deixar inebriar-se pela paisagem para em seguida cumprir o desejo de a compreender, avaliar os seus contornos antes de partir para destinos lúdicos em que o poeta persegue o geógrafo e o filósofo, entendido como complemento e não como inimigo» (p. 118). São vários os pontos de encontro com o “nomadismo intelectual” desenhado por Kenneth White, mas a preocupação do filósofo francês é ainda e sempre com o corpo tornado lugar de experiências inebriantes e enriquecedoras, com o corpo como lugar da realização humana a partir de uma busca que começa e termina na vivência. Ao mesmo tempo que reivindica este “corpo solto”, Onfray dispara contra as forças poderosas que teimam em acomodá-lo aos lugares ilusoriamente confortáveis da vida sedentária. As moradas, os endereços, são prisões abertas que reduzem a existência a uma vida facilmente localizável. Não nos pondo a salvo, podem elas mesmas tornar-se o perigo de uma vida passada ao lado do mundo. É certo que todo o nómada carece de um lugar onde regressar. Não há partida sem regresso. Importa estimular a partida.
Escrito para o Rascunho.
Descendentes de Caim são todos os ingovernáveis, os viajantes inquietos, as almas perdidas que o poder não logra integrar por ser mais forte o desejo de partir do que o conforto de assentar. Descendentes de Caim são os corpos associais que se movimentam no mundo de sentidos abertos para experiências novas, assimilando lugares com a mesma urgência com que o corpo assimila o alimento que o mantém vivo. Eis a pior das condenações que pode atingir o espírito gregário da alma aquietada: a errância, a ausência de lugar. Caim acaba fundando a sua cidade, Henoc, a qual pode hoje ser vislumbrada em todas as cidades, autênticos cemitérios de maiorias que se reproduzem nos gestos, nas palavras, nas acções. É preciso, pois, matar Caim, libertar o homem do peso da maldição, desamarrá-lo e deixá-lo vogar à vontade sem mapas nem destino. Os mapas, representações ficcionais e ilusórias do espaço, são a ferramenta de que o homem se dota para disfarçar a sua perdição. Entrar num território desconhecido é experimentar a ruína, é lançar voluntariamente o corpo numa queda da qual há-de regressar (ou não) apenas com a certeza de se ter, ainda que por breves momentos, realizado plenamente.
Acontece que para Onfray o desejo de viajar pressupõe um sonho, a vontade de um registo, até um decepcionante mínimo de orientação: «Todos os viajantes relatam as suas peregrinações em cartas, cadernos, relatos. Apenas um pequeno número quinta-essencia as suas deslocações numa antologia de poemas. (…) Depois do Atlas e o Poema, essas duas formas da sensibilidade a posteriori, é a Prosa que toma a dianteira. Esta exprime de uma outra forma, mais ténue, mais diluída, o que o poeta transfigura em esplendores» (p. 33). O poema ocorre, então, como esplendorosa captação da experiência, talvez por no poema a imagem continuar em movimento, a realidade não acabar fixada, o “redactor” do real se confundir com um leitor da realidade que pode abrir e fechar subjectivamente as portas que bem entender durante a sua deriva. Mas deixemos a memória trabalhar, não a perturbemos com um excesso de indícios e sinais que acabem por barrar a verdadeira “exaltação estética”.
Iniciar uma viagem no momento em que deixamos para trás o abrigo de todos os dias é colocarmo-nos «num entre-dois que remete para uma lógica peculiar: já não estamos no lugar abandonado e ainda não estamos no lugar desejado» (p. 37). São estes por excelência os lugares da poesia. E neles é impossível não notar uma equivalência entre o espaço e o presente, dito na forma agostiniana como aquele que ainda e já não é. Porém, o entre-dois (geográfico) de Michel Onfray remete igualmente para outras realidades. Sugere-se a viagem em companhia, a realização de «uma verdadeira comunidade hedonista» a dois. Este a dois, sabe-o quem estiver familiarizado com a obra do autor da Teoria do Corpo Amoroso, não prevê a ideia tradicional e burguesa de casal. Antes propõe uma caminhada amigável: «A amizade, esse amor sem corpo, gera um uso comum do tempo, do espaço e da energia» (p. 48). Este a dois amigável disponibiliza-nos para “o prazer da alteridade”, não nos amarra a obrigações que possam reduzir uma abertura ao outro, à experiência do outro, que permita “inventar uma inocência”, ou seja, coloca-nos perante o diferente como a criança que não questiona, não como aquele que olha o diferente procurando o igual, mas como aquele que se procura na diferença.
Eis a conclusão: «Uma poética da geografia pressupõe esta arte de deixar inebriar-se pela paisagem para em seguida cumprir o desejo de a compreender, avaliar os seus contornos antes de partir para destinos lúdicos em que o poeta persegue o geógrafo e o filósofo, entendido como complemento e não como inimigo» (p. 118). São vários os pontos de encontro com o “nomadismo intelectual” desenhado por Kenneth White, mas a preocupação do filósofo francês é ainda e sempre com o corpo tornado lugar de experiências inebriantes e enriquecedoras, com o corpo como lugar da realização humana a partir de uma busca que começa e termina na vivência. Ao mesmo tempo que reivindica este “corpo solto”, Onfray dispara contra as forças poderosas que teimam em acomodá-lo aos lugares ilusoriamente confortáveis da vida sedentária. As moradas, os endereços, são prisões abertas que reduzem a existência a uma vida facilmente localizável. Não nos pondo a salvo, podem elas mesmas tornar-se o perigo de uma vida passada ao lado do mundo. É certo que todo o nómada carece de um lugar onde regressar. Não há partida sem regresso. Importa estimular a partida.
Escrito para o Rascunho.
1 comentário:
Caro Henrique:
Li hoje, na Maria João, que tens nova morada - passageira, provavelmente,pois, após ler este post (que excelente livro, pelo seu comentário! Vou ver se já foi publicado no Brasil, gostaria muito de lê-lo, eu que tenho na viagem um dos temas prediletos), após ler este post imagino-o viajante, jamais sedentário. Se for provisória esta sua morada, que seja, à la Vinícius de Moraes, infinita enquanto dure, como a anterior, aliás. Estes são meus votos sinceros. Estou contente de poder visitá-lo aqui.
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