quinta-feira, 3 de setembro de 2009

A MONTANHA MÁGICA

Quando saiu a primeira edição de A Montanha Mágica (1924), Thomas Mann (n. 1875 – m. 1955) já tinha publicado, entre outros, Os Buddenbrook (1901) e Morte em Veneza (1912), dois dos seus livros mais conhecidos. A Montanha Mágica marca um momento de consagração que conhecerá o ponto mais alto com a conquista do Prémio Nobel da Literatura em 1929. A obra começa a ser escrita na sequência do internamento de Katja Mann, mulher do autor, num sanatório situado em Davos, como uma «espécie de equivalente humorístico da novela Morte em Veneza». O que deveria resultar num pequeno romance, redundou numa obra com mais de 800 páginas (na edição portuguesa) levada a cabo durante doze anos. Apesar da extensão e das dificuldades de leitura inerentes a um estilo tão reflexivo quão minuciosamente descritivo, A Montanha Mágica mereceu um acolhimento excepcional do público, sendo imediatamente traduzida para quase todas as línguas europeias. Durante vários anos, os leitores portugueses tiveram acesso a este clássico através de uma edição da Livros do Brasil. A Dom Quixote colocou à nossa disposição, em Maio passado, uma versão traduzida directamente da língua alemã por Gilda Lopes Encarnação, autora também de um breve posfácio onde nos são oferecidas algumas pistas para a compreensão de um livro de pormenor que alia a «qualidade autobiográfica» à «riqueza do factual».

A narrativa decorre, na sua quase totalidade, no interior do Sanatório Internacional Berghof, onde o jovem burguês Hans Castorp vai visitar o primo, Joachim Ziemben, que aí se encontra internado recuperando de problemas pulmonares. Dos sete capítulos que dão forma ao monumento, cada um deles dividido em diversos subcapítulos, o primeiro é meramente introdutório e relata a chegada de Castorp ao sanatório; o segundo apresenta-nos o herói desta história, mostrando-nos as suas origens familiares e uma educação burguesa, descrita com um forte sentido autocrítico, em clara sintonia com a juventude de Thomas Mann: «Hans Castorp não era um génio nem um idiota, e se evitamos o termo «mediano» na sua caracterização não é, de modo algum, por razões que se prendem com a sua inteligência ou com a simplicidade da sua pessoa, mas sim por respeito para com o seu destino, que, assim nos julgamos inclinados a acreditar, comporta um determinado sentido sobre-individual» (p. 44-45)». Estas alusões à ausência de um carácter excepcional na personagem central do romance são bastante frequentes, e expõem com elegância, rigor, e bastante fundura a personalidade e a psicologia de Hans Castorp. O que possa haver de excepcional neste jovem não é tanto do inato como parece ser do adquirido, ou, dito de outra forma, provém de uma fenomenologia da percepção que o vai transformando sem que ele estabeleça quaisquer compromissos redutores das experiências pessoais. Hans Castorp é «um filho traquinas da vida» em processo de transformação.

No terceiro capítulo encontramo-lo em contacto com o ambiente respirado no Sanatório, entrando numa nova sociedade, com as suas regras e idiossincrasias específicas, estabelecendo pontes de relação com os seus habitantes, constituindo elos mais ou menos fortes com alguns deles. A postura séria e formal de Hans Castorp, a sua «inclinação para tudo o que é triste e edificante» (p. 213), choca com o ambiente vivido no Sanatório e adquire um contraponto essencial quando este trava conhecimento com o senhor Settembrini, um espirituoso maçon cujo sentido pedagógico não mais deixará de zelar pela formação do nosso herói. O mesmo sucederá quando Castorp se cruzar com Leo Naphta, no sexto capítulo, um jesuíta «simultaneamente revolucionário e aristocrata, simultaneamente socialista e obcecado pelo sonho de tomar parte em formas de vida elevadas e distintas, exclusivas e organizadas» (p. 500). As contendas entre Settembrini e Naphta, como que reivindicando para si a formação de Castorp, marcarão indelevelmente a natureza especulativa da narrativa, que, bem vistas as coisas, não deixa de ser o traço principal do jovem Hans, em contraste com o rigor militar de Joachim. Acrescente-se às inquietações do espírito a febre do amor experienciado por Madame Chauchat, cujos olhos o remetem para uma paixão antiga sentida pelo colega Pribislav Hippe. Chauchat desperta em Castorp amores oprimidos, paixões fleumáticas, um ambivalente sentido do tempo pautado pelo fenómeno da espera.

Com o avançar das páginas e a sucessão de capítulos, aclara-se uma das intenções centrais do romance: indagar acerca do tempo. São imensas as dissertações sobre o tema, os envios e as chamadas de atenção para pormenores que fazem deste um romance onde as «antinomias espirituais» (Kalus Schröter) confluem para uma mesma questão: a problemática temporal, a morte e a vida no imo de um movimento de espera. O início do último capítulo é explícito: «Será possível narrar o tempo, o tempo em si e por si, o tempo como tal? Claro que não, isso seria uma perfeita loucura! (…) E se soa exagerado afirmar que se pode «narrar o tempo», não parecerá, contudo, uma perfeita loucura, como se nos afigurava de início, querer narrar acerca do tempo, de modo que o epíteto de «romance do tempo» se pode revestir de um duplo sentido, singular e mágico» (pp. 611-612). Neste sentido, Thomas Mann parece fazer coincidir a consciência do tempo com a experiência dos dados da natureza. Já no termo do romance, distingue o tempo medido pelos relógios de um «tempo comparável ao crescimento da relva, que nenhum olho humano vislumbra, mas que todavia não pára secretamente de suceder» (p. 806). É no interior deste tempo objectivo que «o nosso sonhador em hibernação» se transforma. A magia da montanha não é outra senão a de nos mostrar esse tempo objectivo que Edmund Husserl classificava de transcendental e Thomas Mann faz descer à planície.

Escrito para o Rascunho.

1 comentário:

João Pedro Ferrão disse...

Só uma nota: a tradução da Livros do Brasil também foi feita a partir do original.