Só muito esforçadamente podemos aceitar que o psicopata John Doe pudesse invejar a vida do detective Mills. Este vivia num apartamento que vibrava a cada passagem do metropolitano, tinha um trabalho de merda numa cidade inóspita, uma mulherzinha bonita, é certo, mas com quem raramente estava, e que ainda por cima lhe omitia pormenores fundamentais da vida conjugal. Mills não é invejável, até porque sucumbirá à ira com monótona previsibilidade. A passagem que Sommerset lê do diário de Doe mostra-nos uma mente que repugna a vida normal e previsível de um homem como o detective Mills. Afinal, John Doe não contém o vómito quando um indivíduo banal tenta meter conversa consigo no Metro. E ri-se enquanto vomita, enjoado com tanta trivialidade. O detective Mills é vulgar e frívolo, um palerma armado em mauzão, produto típico de uma sociedade, como muito bem diagnostica Sommerset, a rebentar de apatia. Mills apenas merecia a mesma repugnância que é dedicada às outras vítimas. A sua vida não merecia ser invejada. Mas a vida do detective Sommerset sim, essa poderia merecer a inveja de uma mente como a de John Doe. Sommerset é inteligente e solitário, é um homem em ruptura com a sua sociedade, um espírito crítico, culto, sofredor, um melancólico (em tempos, a melancolia foi considerada pecado capital) que consegue manter-se integrado à custa de um invejável autodomínio. As insónias são uma prova das inquietações que o atormentavam. Era muito mais coerente que John Doe matasse, por inveja, o detective Sommerset. Jamais a mulher de Mills, cuja vida denota uma vulgaridade atroz, a mesma vulgaridade sobre a qual Doe vomitava. John Doe não venceu. Quis completar em horas uma obra pensada, engendrada, preparada durante anos. Precipitou-se perante a sua própria ansiedade. E neste caso, como noutros, a precipitação acabou por ser o pecado capital do artista.
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