quarta-feira, 14 de outubro de 2009

ELOGIO DO CINISMO (1)

O cinismo não foi vítima de um mal entendido, ele foi muito bem entendido, por isso o remeteram para o plano da indecência, porque o cinismo era herético, era o riso, “a paixão mais conveniente à natureza humana”, o cinismo pretendia a felicidade na Terra, longe dos Céus. É preciso reabilitar o cinismo. O cinismo define-se pela redução ao absurdo, desabsolutiza a verdade, desautoriza o mestre, o cinismo ri da tragédia, rasga o cenário para que os ossos da encenação fiquem à mostra, torna visível a hipocrisia dos argumentos, reivindica para a vida o que os disciplinados da razão pretendiam abstrair, transformando em teoria as suas próprias feridas, autoproclamando a capacidade de curar as feridas dos outros. Uma “contra-história da filosofia”(Onfray) deve reabilitar o cinismo, deve ressuscitar os obscuros, retirá-los das catacumbas onde foram arrumados pelos inimigos do corpo, porque não se deve dizer cinismo como quem diz gripe:

Pôr a nu as quimeras, eis o programa dos cínicos. Incluído o que diz respeito ao desejo, ao prazer e às relações sexuadas. Qual é o objectivo de Diógenes, de Crates e de Hiparquia? Acabar com a hipocrisia, a linguagem dupla, a moral moralista, o falso pudor, a dissimulação, a vergonha e outras variações sobre os temas, que se tornaram muito cristãos, da culpabilidade, da falta, do pecado, da recusa do corpo, do desprezo pela sensualidade e da aversão pela sexualidade. Não há nada de condenável num corpo sujeito à necessidade de alimento e de bebida. Então, porque é que, quando está dependente pressão da libido, isso há-de ser um sinal de maldição, um traço de vergonha? A carne, os átomos, a matéria também são vítimas de desejos, de pulsões, de necessidades. A regra é satisfazê-los de uma forma tão desculpabilizada como o fazem os animais na natureza: a cultura pressupõe e propõe, segundo uma lógica ética, a obediência máxima às leis naturais. O materialismo equivale a uma lição cosmogónica na qual o bestiário serve de ensinamento eficaz, rápido e claro.
Os cínicos fazem o culto do sexo pago, das mulheres em trânsito, das histórias passageiras relacionadas com o prazer puro e simples. Antístenes admira-se de ser acusado de ter uma parceira efémera mas que lhe foi, contudo, de grande utilidade. Responde que não se olha com maus modos para o barco para o qual subimos e que, contudo, já serviu a muitos outros para atravessar o Mediterrâneo. A primeira libertina que aparece faz o trabalho que tem a ver com a sua função e com o contrato estabelecido, e pouco importam a sua beleza, a sua inteligência, a sua posição social ou a sua virgindade, todas essas quimeras tirânicas. Até poderia ser feia, estúpida, pobre e prostitua. A única coisa que interessa é a relação contratual, na qual o desejo, que está a ponto de ser sufocado e de transbordar, encontra oportunidade para se libertar numa relação estabelecida de comum acordo. O objectivo é a expansão do indivíduo. Não há nenhuma necessidade de, para tanto, disfarçar essa necessidade com arrulhos, declarações, atitudes ridículas, promessas que não se podem cumprir.
O gesto de Antístenes dá cabo das mitologias sociais que se alimentam de monogamia, de fidelidade, de eleição amorosa, seguidas do cortejo habitual de enganos, hipocrisia e ciumeira. Trata-se de libertar o desejo das amarras gregárias que o justificam exclusivamente em termos de uma sujeição vivida segundo fórmulas conformistas. A dissociação cínica radical afasta o desejo e o prazer do amor e separa claramente estes dois registos. Destruindo o sagrado, o religioso e o espiritual que estão associados ideologicamente à sexualidade, os filósofos de mochila e cajado laicizam o corpo e as relações, fazendo o culto da carne e do contrato, da matéria e da vontade mútua. Quando ouvem falar em amor, os materialistas cínicos sacam da espada ─ e desatam a rir, como qualquer bom discípulo de Demócrito.


Michel Onfray, in Teoria do Corpo Amoroso, trad. Fernando Caetano, Temas e Debates, Setembro de 2001, pp. 63-64. [Post surgido após a visualização da entrevista aqui referida.]

4 comentários:

manuel a. domingos disse...

disse-o muitas vezes e repito-o: só o cinismo nos pode salvar

sara rocio disse...

se o cinismo é a salvação...porquê sentir-se uma condenação generalizada?
prefiro não me salvar, mesmo que isso signifique um cinismo sobre mim.

DL disse...

O Michel Onfray, que muito aprecio como escritor, passou muito tempo a estudar os "pré-socráticos" e conta muitas coisas interessantes sobre eles. Mas confesso nunca ter percebido muito bem o elogio que faz dos cínicos. Este cinismo de que ele fala não é o nosso cinismo contemporâneo, é antes um anti-idealismo realista. Parece-me um paradoxo ele dizer-se hedonista e excluir totalmente a espiritualidade e o idealismo. Um hedonista de mochila e cajado, que dorme num barril e se alimenta de polvo cru não vai muito longe, e estou a ser propositadamente cínico.

garibaldov disse...

Não vai muito longe para aonde?