«Vestimo-nos como amamos: mal, sempre mais do que o necessário, procurando alimentar e dar realidade ao lugar desse vazio».
Fernando Guerreiro, in Italian Shoes, Vendaval, Abril de 2005.
Ninguém atravessa o deserto com sapatos italianos. Vamos por partes: descalço-me para sentir a brasa debaixo dos pés. Os dedos enterram-se na areia, o corpo habitua-se à ferroada do escorpião, aqui e acolá o veneno pode ser tratado com a água do oásis. Não sei se é preciso, mas parece-me natural que a arte vá sangrando e que o corpo beba desse sangue sem supor a eternidade dos vampiros. O trabalho dos paparazzi está longe da arte pornográfica, o trabalho dos paparazzi invade o corpo, a arte pornográfica capta o corpo na sua disponível abertura. De facto, a pornografia aproxima-nos de uma ideia antiga de sagrado, na medida em que nos oferece o corpo para lá do corpo, a dissecação anatómica do Ser, mas o paparazzi é um intruso, limita-se a invadir o campo do corpo capturando-lhe a ilusão de uma superfície. Ele, o paparazzi, promove a interpretação abusiva de um gesto, ao seleccionar entre milhares de imagens aquela que mais convém à sua venenosa ambição. Dá-nos apenas o que resulta de uma intenção, não nos dá, como a pornografia, a intenção. Ora, isto é tanto mais verdade quanto se revela indiscutível a mutante constituição da imagem: «mutantes, as imagens da BD, do cinema, da música ou da poesia, tanto constituem flashes do real imaginário como antecipações e catacreses do futuro». Porque a imagem, ao oferecer-nos o corpo para lá do corpo, morde-nos a imaginação. O veneno da imagem é o veneno do escorpião, a sua toxicidade mede-se em função da anulação do sujeito. A imagem captura a presa, inocula-a, no sentido de a contagiar, age sobre o sistema nervoso da presa, causa dor, palpitações, paralisa-nos. A imagem coloca-nos no centro nevrálgico da imaginação, produzindo real, parindo futuro, estimulando a acção que surgirá, mais ou menos irresistivelmente, da relação que o corpo mantenha com o veneno. As imagens da literatura, porque se articulam com a fantasmagoria sonora das palavras, porque nos vêm aos olhos como sons abstractos, puramente mentais, porque estão imersas no sentido e no significado simbólico das palavras, as imagens da literatura, dizia, oferecem-nos o corpo para lá do corpo de um modo distinto, oferecem-nos a música silenciosa das palavras (um silêncio ruidoso e, por vezes, ruinoso). Elas não se limitam ao sentido físico ─ visão, audição, etc. ─ que as capta, elas resultam da articulação entre todos os sentidos, são imagens totais que “des-ocultam” «em nós o sentido (e o vazio) da vida», oferecendo-nos o corpo-total para lá do corpo-parcial. A isto chamamos metafísica - por isso lembramos, com Artaud, que toda a linguagem é metafísica -, não porque o seu lugar transcenda o corpo, mas porque o seu lugar é o não-lugar do corpo, é a «explosão atómica» do corpo, é o corpo-total que «ex-centra-nos e dês-possui-nos de nós mesmos». «Pelo que exige de nós, o “estético” i-limita-nos, produzindo no seu doloroso parto o corpo glorioso, mas monstruoso, da Literatura». Monstros e Fantasmas, o que se vê, o que se mostra, numa realidade irreal, o que se imagina paradoxalmente a partir do que se experiencia, pois entre a experiência e a imaginação existe um elo: a areia do deserto onde enterramos os pés. O acto da escrita, produtor de simulacros, não só representa como apresenta, incha a realidade de mais mundo, gera-lhe o futuro ainda em potência; o poema potencia o mundo, calça-nos com calçado adequado à travessia do deserto, «o poema, tal como a fotografia, talha ─ recorta e define ─ o seu real (uma porção do nada que se inscreve, concretiza) no espaço». A hiper-realidade do poema é a hiper-realidade da pornografia, mas discordo que «o corpo nu e exposto da literatura» tenha alguma coisa que ver com a pseudo-hiper-realidade do paparazzi. Neste, nada se gera, pois não há corpo que possa engravidar do que quer que seja, ele limita-se a invadir o campo do corpo capturando-lhe a ilusão de uma superfície, dá-nos apenas o que resulta de uma intenção, não nos dá, como a pornografia, a intenção.
Fernando Guerreiro, in Italian Shoes, Vendaval, Abril de 2005.
Ninguém atravessa o deserto com sapatos italianos. Vamos por partes: descalço-me para sentir a brasa debaixo dos pés. Os dedos enterram-se na areia, o corpo habitua-se à ferroada do escorpião, aqui e acolá o veneno pode ser tratado com a água do oásis. Não sei se é preciso, mas parece-me natural que a arte vá sangrando e que o corpo beba desse sangue sem supor a eternidade dos vampiros. O trabalho dos paparazzi está longe da arte pornográfica, o trabalho dos paparazzi invade o corpo, a arte pornográfica capta o corpo na sua disponível abertura. De facto, a pornografia aproxima-nos de uma ideia antiga de sagrado, na medida em que nos oferece o corpo para lá do corpo, a dissecação anatómica do Ser, mas o paparazzi é um intruso, limita-se a invadir o campo do corpo capturando-lhe a ilusão de uma superfície. Ele, o paparazzi, promove a interpretação abusiva de um gesto, ao seleccionar entre milhares de imagens aquela que mais convém à sua venenosa ambição. Dá-nos apenas o que resulta de uma intenção, não nos dá, como a pornografia, a intenção. Ora, isto é tanto mais verdade quanto se revela indiscutível a mutante constituição da imagem: «mutantes, as imagens da BD, do cinema, da música ou da poesia, tanto constituem flashes do real imaginário como antecipações e catacreses do futuro». Porque a imagem, ao oferecer-nos o corpo para lá do corpo, morde-nos a imaginação. O veneno da imagem é o veneno do escorpião, a sua toxicidade mede-se em função da anulação do sujeito. A imagem captura a presa, inocula-a, no sentido de a contagiar, age sobre o sistema nervoso da presa, causa dor, palpitações, paralisa-nos. A imagem coloca-nos no centro nevrálgico da imaginação, produzindo real, parindo futuro, estimulando a acção que surgirá, mais ou menos irresistivelmente, da relação que o corpo mantenha com o veneno. As imagens da literatura, porque se articulam com a fantasmagoria sonora das palavras, porque nos vêm aos olhos como sons abstractos, puramente mentais, porque estão imersas no sentido e no significado simbólico das palavras, as imagens da literatura, dizia, oferecem-nos o corpo para lá do corpo de um modo distinto, oferecem-nos a música silenciosa das palavras (um silêncio ruidoso e, por vezes, ruinoso). Elas não se limitam ao sentido físico ─ visão, audição, etc. ─ que as capta, elas resultam da articulação entre todos os sentidos, são imagens totais que “des-ocultam” «em nós o sentido (e o vazio) da vida», oferecendo-nos o corpo-total para lá do corpo-parcial. A isto chamamos metafísica - por isso lembramos, com Artaud, que toda a linguagem é metafísica -, não porque o seu lugar transcenda o corpo, mas porque o seu lugar é o não-lugar do corpo, é a «explosão atómica» do corpo, é o corpo-total que «ex-centra-nos e dês-possui-nos de nós mesmos». «Pelo que exige de nós, o “estético” i-limita-nos, produzindo no seu doloroso parto o corpo glorioso, mas monstruoso, da Literatura». Monstros e Fantasmas, o que se vê, o que se mostra, numa realidade irreal, o que se imagina paradoxalmente a partir do que se experiencia, pois entre a experiência e a imaginação existe um elo: a areia do deserto onde enterramos os pés. O acto da escrita, produtor de simulacros, não só representa como apresenta, incha a realidade de mais mundo, gera-lhe o futuro ainda em potência; o poema potencia o mundo, calça-nos com calçado adequado à travessia do deserto, «o poema, tal como a fotografia, talha ─ recorta e define ─ o seu real (uma porção do nada que se inscreve, concretiza) no espaço». A hiper-realidade do poema é a hiper-realidade da pornografia, mas discordo que «o corpo nu e exposto da literatura» tenha alguma coisa que ver com a pseudo-hiper-realidade do paparazzi. Neste, nada se gera, pois não há corpo que possa engravidar do que quer que seja, ele limita-se a invadir o campo do corpo capturando-lhe a ilusão de uma superfície, dá-nos apenas o que resulta de uma intenção, não nos dá, como a pornografia, a intenção.
2 comentários:
Só hoje decobri o novo espaço!
Voltarei. Abraço
Ruy Ventura
Ainda bem que o recordas. Há cerca de um ano disse-me que tinha optado por fechar-se em copas.
Sai trunfo!
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