segunda-feira, 24 de maio de 2010

AUTO-RETRATO


Considerai, rapazes,
esta língua roída pelo cancro:
Sou professor num liceu obscuro,
Perdi a voz dando aulas.
(Depois de tudo ou nada
Faço quarenta horas semanais).
Que vos parece a minha cara esbofeteada?
De facto, inspira lástima olhar-me!
E o que dizeis deste nariz apodrecido
Pela cal do giz degradante?

Em matéria de olhos, a três metros
Nem a minha própria mãe reconheço.
O que me aconteceu? – Nada.
Arruinei-os dando aulas:
A má iluminação, o sol,
A miserável lua venenosa.
E tudo para quê!
Para ganhar um imperdoável pão
Duro como a cara do burguês
E com cheiro e sabor a sangue.
Para quê termos nascido como homens
Se nos dão uma morte de animais?

Devido ao excesso de trabalho, às vezes
Vejo formas estranhas no ar,
Oiço loucas correrias,
Risos, criminosas conversações.

Observai estas mãos
E estas faces brancas de cadáver,
Estes escassos pêlos que me restam.
Estas infernais rugas negras!
Porém eu fui tal como vocês,
Jovem, cheio de belos ideais,
Sonhei fundindo o cobre
E limando as arestas do diamante:
Aqui me tendes hoje
Atrás desta inconfortável pensão
Embrutecido pelo batuque
Das quinhentas horas semanais.


Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF.

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