domingo, 23 de maio de 2010
CANTA-SE AO MAR
Nada poderá afastar da minha memória
A luz daquela misteriosa lâmpada,
Nem o efeito que teve nos meus olhos
Nem a impressão que me deixou na alma.
Tudo pode o tempo, contudo
Creio que nem a morte há-de apagá-la.
Se me permitem, vou explicar-me aqui
Com o melhor eco da minha garganta.
Francamente, naquele tempo eu nem
Compreendia como me chamava,
Ainda não tinha escrito o primeiro verso
Nem derramado a primeira lágrima;
O meu coração era nem mais nem menos
Que o quiosque esquecido de uma praça.
Mas sucedeu que certo dia meu pai
Foi colocado no sul, na remota
Ilha de Chiloé onde o Inverno
É como uma cidade abandonada.
Parti com ele e sem pensar chegámos
A Puerto Montt numa manhã clara.
A minha família tinha vivido sempre
No vale central ou na montanha,
De maneira que nunca, nem por sombras,
Se falou do mar em nossa casa.
Sobre este assunto eu sabia apenas
O que ensinavam na escola pública
E uma ou outra questão contrabandeada
Nas cartas de amor das minhas irmãs.
Descemos do comboio entre bandeiras
E um solene festival de sinos
Quando o meu pai me pegou pelo braço
E devolvendo os olhos à brancura,
Livre e eterna espuma para onde
Ao longe um país sem nome navegava,
Como quem reza uma oração me disse
Com a voz que trago intacta nos ouvidos:
«Este é, rapaz, o mar». O mar sereno,
O mar que banha de cristal a pátria.
Não sei dizer porquê, mas deu-se que
Uma força maior me encheu a alma
E sem medir, sem sequer suspeitar,
A real magnitude da minha campanha,
Comecei a correr, sem peso nem medida,
Como um desesperado na direcção da praia
E num instante memorável estava
Frente a esse grande senhor das batalhas.
Foi então que estendi os braços
Sobre o rosto ondulante das águas,
O corpo rígido, as pupilas fixas
Na verdade sem distância nem fim,
Sem que no meu ser se movesse um cabelo,
Como a sombra azul das estátuas!
Quanto tempo durou o nosso cumprimento
Não poderão as palavras dizê-lo.
Devo apenas acrescentar que naquele dia
Nasceu na minha mente a inquietude e a ânsia
De fazer em verso o que onda a onda
Deus criava incessantemente a meus olhos.
Data desde então a fervente
E abrasadora sede que me arrebata:
É que, na verdade, desde que o mundo existe,
A voz do mar estava na minha pessoa.
Nicanor Parra, de Poemas y Antipoemas (1954).
Versão de HMBF.
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3 comentários:
Muy rico, carnal ;)
Deu-me para trabalhar nas obras. Ricas vidas. :-)
;)
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