Tornou-se demasiado vulgar, mas acertado, reconhecer o peso imenso da obra pessoana sobre todo o séc. XX português, a ponto de Fernando Pessoa não ser já tão-somente o nome do “nosso” mais influente poeta do século passado, mas, sobretudo, um fantasma que paira sobre toda a poesia portuguesa que se lhe seguiu. Não faltam estudos sobre a sua obra, análises, teses, querelas, pelo que a cada novo livro que o aponta como objecto de estudo nos cabe desconfiar sobre o que possa ainda haver a dizer acerca de obra tão amplamente dissecada. Neste sentido, o que O Devir-Eu de Fernando Pessoa (Relógio D’Água, Abril de 2010) nos propõe não é uma nova leitura da poética pessoana, pelo menos não tanto quanto busca, em quatro ensaios distintos, entender um dos pilares fundamentais dessa poética: o de uma permanente transformação da identidade. No primeiro ensaio, simplesmente intitulado Devir-Pessoa, José Gil tenta «encarar o poder de atracção da escrita pessoana como uma sua característica interna» (p. 10). A dificuldade da abordagem advém da própria complexidade do objecto analisado. De certa maneira, a poesia de Pessoa é das que menos se deixa analisar. Isto porque ela própria se constrói num processo de auto-análise que tende a derrotar toda a tentativa de explicação exterior.
Tendo como ponto de partida os Apontamentos para Uma Estética Não-Aristotélica, mais fácil se torna entender o carácter tirânico da obra do autor de Ode Triunfal. A subjugação do leitor, em contraposição a um processo de captura, não me parece residir tanto na convocação para um mundo de simulações e despersonalização, como na sua redução ao papel do ponto no decorrer de uma peça de teatro. José Gil tem toda a razão quando afirma que «se Pessoa não escreve da mesma maneira que os outros poetas, também não se lê Pessoa como se lêem os outros poetas» (p. 20). O «Eu nulo substancial» onde decorre a tragicomédia heteronímica ordena ao leitor uma intervenção indispensável, que é a de lembrar aos heterónimos a sua natureza virtual no plano de uma intimidade eruptiva que vem à página, na sua diversidade, através de um único corpo. Sublinhemos corpo. Pessoa, ele mesmo, torna-se o palco de uma multidão onde o leitor, mais escravizado do que vampirizado, procurará sobreviver como uma criança perdida. Escravizado, obviamente, pelos truques de um ilusionista/mágico cujo sentido existencial está dependente da subjugação do leitor. Vem daí o seu efeito, digamos assim, hipnótico.
Se no ensaio anterior o que está em evidência é uma espécie de relatividade do eu, o ensaio subsequente, A Cidade e o Quarto de Bernardo Soares, ocupar-se-á da relatividade do espaço (ou das «metamorfoses de espaço») na obra pessoana, mormente no Livro do Desassossego. Deste modo, se nesse Eu desdobrado numa multidão encontramos uma infinitude de possibilidades, que em Álvaro de Campos aparecem elucidadas num «sentir tudo de todas as maneiras», em Bernardo Soares o espaço do quarto é transformado num infinito que pode socorrer do tédio a alma do sonhador. Inserido na cidade, «espécie de canal ou de deserto que permite passar de um espaço ao outro, resultando da passagem um regime finito ou infinito de sensações» (p. 38), o quarto é o lugar de uma interioridade constantemente ameaçada pela realidade social. Em Pessoa ainda vislumbramos a excepcionalidade do poeta enquanto entidade ameaçada pela «existência banal da vida» (p. 40), mas essa existência banal da vida procura escapulir-se numa viagem algo onírica que supera uma noção de Realidade esgotada no domínio do mundo exterior. Entre exterior e interior, deixa de haver uma fronteira clara. É isso que legitima a afirmação de que «o interior da alma comunica com o interior das coisas, com o interior do exterior» (p. 42), pois «o dentro comunica com o fora, a alma-cidade com a cidade exterior, o infinitamente pequeno das sensações com o infinitamente grande do cosmos» (p. 43).
A esta perspectiva não será alheia uma visão cabalística do mundo, a qual, curiosamente, assume inquestionável eloquência na correspondência mantida com Ofélia Queiroz. De certa maneira, podemos afirmar que Ofélia foi a primeira grande leitora do drama pessoano. Leitora de um mundo virtual em plano real, teve de aprender a lidar com uma multidão de amantes no corpo de um homem só. «Eu preferia a desilusão a viver iludida», diz ela ao grande ilusionista. «O jogo da sinceridade das palavras» (p. 50) confronta agora Pessoa com uma nova realidade, que já não é apenas a do «fingimento poético com verdade» (p. 51). Os planos da vida e da escrita acabam “interseccionados” como nunca. A leitura que José Gil faz desta complexa relação, num texto intitulado A máquina de amor de Ofélia-Fernando Pessoa, é deveras estimulante: «desde o princípio da relação se estabelece um duplo desfasamento: entre o plano de escrita de Ofélia e o de Fernando Pessoa; entre o plano da vida de um e o do outro. Mas desfasamento que implica simetria, já que para Ofélia o plano da escrita que garante a sinceridade das emoções equivale ao plano da vida em Pessoa. Simetria incompleta, no entanto, pois o plano da escrita em Pessoa não corresponde a nada em Ofélia» (p. 52). A escassez de correspondência por parte de Pessoa, em comparação a Ofélia, e as ausências a encontros marcados, que levarão a amante a uma situação de desespero, permitem-nos julgar que para o Poeta esta viagem foi a que esteve mais próxima de o trazer à banalidade da vida, embora sem que alguma vez tenha saído de onde sempre esteve (enclausurado): o «Eu nulo substancial». Isto apesar dos «beijinhos» e dos «chi-corações».
Termina este livro com uma leitura meticulosa do poema Passagem das Horas. Em O Inconsciente da Sensação na Passagem da Horas, José Gil analisa à lupa a «estética sensacionista» levada a cabo pelo heterónimo Álvaro de Campos. Não estando em causa a assunção da ideia de inconsciente, propõe-se, pelo menos, a noção de «um espaço e tempo “desaparecidos”, ausentes, não-conscientes; ou melhor, excluídos da consciência» (p. 69). Sendo assim, afirma José Gil, devemos reconhecer dois regimes na Passagem das Horas: um em que as coisas reais se rebatem sobre o Eu e a experimentação sensacionista aborta; um outro em que o Eu explode para o exterior e forma um «corpo-sem-órgãos». Este corpo sem órgãos, que sente tudo de todas as maneiras e simpatiza com tudo, talvez possa antes ser lido como uma influência clara do mestre Walt Whitman, o qual, segundo D. H. Lawrence, preferiu dizer simpatia a dizer amor «porque Simpatia significa sentir com e não sentir por» (Cf. Walt Whitman, Relógio D’Água, 1994). Ora, parece-me que este sentir em consonância com o Outro, «captando à passagem a vibração da sua alma e da sua carne», é, precisamente, o que falhou no projecto sensacionista de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, por, e nisso parece bastante pertinente a leitura de José Gil, nunca ter o corpo deixado de «resistir ao devir-mundo e permanece[r] corpo irremediavelmente físico» (p. 85). Dito de outra forma, até o corpo que sente, em Fernando Pessoa, é um corpo virtual, ou seja, o corpo de Álvaro de Campos. Em suma: a consciência do fracasso é o que confere grandeza ao poeta.
Tendo como ponto de partida os Apontamentos para Uma Estética Não-Aristotélica, mais fácil se torna entender o carácter tirânico da obra do autor de Ode Triunfal. A subjugação do leitor, em contraposição a um processo de captura, não me parece residir tanto na convocação para um mundo de simulações e despersonalização, como na sua redução ao papel do ponto no decorrer de uma peça de teatro. José Gil tem toda a razão quando afirma que «se Pessoa não escreve da mesma maneira que os outros poetas, também não se lê Pessoa como se lêem os outros poetas» (p. 20). O «Eu nulo substancial» onde decorre a tragicomédia heteronímica ordena ao leitor uma intervenção indispensável, que é a de lembrar aos heterónimos a sua natureza virtual no plano de uma intimidade eruptiva que vem à página, na sua diversidade, através de um único corpo. Sublinhemos corpo. Pessoa, ele mesmo, torna-se o palco de uma multidão onde o leitor, mais escravizado do que vampirizado, procurará sobreviver como uma criança perdida. Escravizado, obviamente, pelos truques de um ilusionista/mágico cujo sentido existencial está dependente da subjugação do leitor. Vem daí o seu efeito, digamos assim, hipnótico.
Se no ensaio anterior o que está em evidência é uma espécie de relatividade do eu, o ensaio subsequente, A Cidade e o Quarto de Bernardo Soares, ocupar-se-á da relatividade do espaço (ou das «metamorfoses de espaço») na obra pessoana, mormente no Livro do Desassossego. Deste modo, se nesse Eu desdobrado numa multidão encontramos uma infinitude de possibilidades, que em Álvaro de Campos aparecem elucidadas num «sentir tudo de todas as maneiras», em Bernardo Soares o espaço do quarto é transformado num infinito que pode socorrer do tédio a alma do sonhador. Inserido na cidade, «espécie de canal ou de deserto que permite passar de um espaço ao outro, resultando da passagem um regime finito ou infinito de sensações» (p. 38), o quarto é o lugar de uma interioridade constantemente ameaçada pela realidade social. Em Pessoa ainda vislumbramos a excepcionalidade do poeta enquanto entidade ameaçada pela «existência banal da vida» (p. 40), mas essa existência banal da vida procura escapulir-se numa viagem algo onírica que supera uma noção de Realidade esgotada no domínio do mundo exterior. Entre exterior e interior, deixa de haver uma fronteira clara. É isso que legitima a afirmação de que «o interior da alma comunica com o interior das coisas, com o interior do exterior» (p. 42), pois «o dentro comunica com o fora, a alma-cidade com a cidade exterior, o infinitamente pequeno das sensações com o infinitamente grande do cosmos» (p. 43).
A esta perspectiva não será alheia uma visão cabalística do mundo, a qual, curiosamente, assume inquestionável eloquência na correspondência mantida com Ofélia Queiroz. De certa maneira, podemos afirmar que Ofélia foi a primeira grande leitora do drama pessoano. Leitora de um mundo virtual em plano real, teve de aprender a lidar com uma multidão de amantes no corpo de um homem só. «Eu preferia a desilusão a viver iludida», diz ela ao grande ilusionista. «O jogo da sinceridade das palavras» (p. 50) confronta agora Pessoa com uma nova realidade, que já não é apenas a do «fingimento poético com verdade» (p. 51). Os planos da vida e da escrita acabam “interseccionados” como nunca. A leitura que José Gil faz desta complexa relação, num texto intitulado A máquina de amor de Ofélia-Fernando Pessoa, é deveras estimulante: «desde o princípio da relação se estabelece um duplo desfasamento: entre o plano de escrita de Ofélia e o de Fernando Pessoa; entre o plano da vida de um e o do outro. Mas desfasamento que implica simetria, já que para Ofélia o plano da escrita que garante a sinceridade das emoções equivale ao plano da vida em Pessoa. Simetria incompleta, no entanto, pois o plano da escrita em Pessoa não corresponde a nada em Ofélia» (p. 52). A escassez de correspondência por parte de Pessoa, em comparação a Ofélia, e as ausências a encontros marcados, que levarão a amante a uma situação de desespero, permitem-nos julgar que para o Poeta esta viagem foi a que esteve mais próxima de o trazer à banalidade da vida, embora sem que alguma vez tenha saído de onde sempre esteve (enclausurado): o «Eu nulo substancial». Isto apesar dos «beijinhos» e dos «chi-corações».
Termina este livro com uma leitura meticulosa do poema Passagem das Horas. Em O Inconsciente da Sensação na Passagem da Horas, José Gil analisa à lupa a «estética sensacionista» levada a cabo pelo heterónimo Álvaro de Campos. Não estando em causa a assunção da ideia de inconsciente, propõe-se, pelo menos, a noção de «um espaço e tempo “desaparecidos”, ausentes, não-conscientes; ou melhor, excluídos da consciência» (p. 69). Sendo assim, afirma José Gil, devemos reconhecer dois regimes na Passagem das Horas: um em que as coisas reais se rebatem sobre o Eu e a experimentação sensacionista aborta; um outro em que o Eu explode para o exterior e forma um «corpo-sem-órgãos». Este corpo sem órgãos, que sente tudo de todas as maneiras e simpatiza com tudo, talvez possa antes ser lido como uma influência clara do mestre Walt Whitman, o qual, segundo D. H. Lawrence, preferiu dizer simpatia a dizer amor «porque Simpatia significa sentir com e não sentir por» (Cf. Walt Whitman, Relógio D’Água, 1994). Ora, parece-me que este sentir em consonância com o Outro, «captando à passagem a vibração da sua alma e da sua carne», é, precisamente, o que falhou no projecto sensacionista de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, por, e nisso parece bastante pertinente a leitura de José Gil, nunca ter o corpo deixado de «resistir ao devir-mundo e permanece[r] corpo irremediavelmente físico» (p. 85). Dito de outra forma, até o corpo que sente, em Fernando Pessoa, é um corpo virtual, ou seja, o corpo de Álvaro de Campos. Em suma: a consciência do fracasso é o que confere grandeza ao poeta.
Escrito para o Rascunho.
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