quinta-feira, 24 de junho de 2010

VERSOS SOLTOS


Um olho níveo não me diz nada
Até quando posar de inteligente
Para quê completar um pensamento
Há que lançar as ideias ao vento!
A desordem também tem seu encanto
Um morcego agita-se contra o sol:
A poesia não molesta ninguém
E a fúchsia parece bailarina.

Se não é sublime a tormenta aborrece
Estou farto de deus e do diabo
Qual é o preço desse par de calças?
O galã livra-se da sua noiva
Nada há mais antipático que o céu
O orgulho, retratam-no de pantufas:
Nunca discute a alma que se estima
E a fúchsia parece bailarina.

Se embarca num violino naufraga
A donzela casa-se com um velho
Gente desgraçada não sabe o que diz
Com o amor não se lhe suplica a ninguém:
Em vez de leite saía-lhe sangue
As aves cantam tão-só por diversão
E a fúchsia parece bailarina.

Uma vez desejei suicidar-me
O rouxinol ri-se de si próprio
A perfeição é uma vasilha sem fundo
Todo o transparente nos arrebata:
Não há maior prazer do que espirrar
E a fúchsia parece bailarina.

Já não resta catraia que violar
Na sinceridade está o perigo
Eu ganho a minha vida aos pontapés
Entre peito e espada há um abismo
Há que deixar o moribundo morrer:
Minha catedral é a casa de banho
E a fúchsia parece bailarina.

Reparte-se presunto ao domicílio
Poder-se-á ver as horas numa flor?
Vendem-se crucifixos de ocasião
A velhice também tem o seu prémio
Os funerais apenas deixam dívidas:
Júpiter ejacula sobre Leda
E a fúchsia parece bailarina.

Todavia convivemos num bosque
Não sentis o murmúrio das folhas?
Porque não me direis que estou a sonhar
Aquilo que digo deve ser assim
Estou convencido que tenho razão
Eu também sou um deus à minha maneira
Um criador que não produz nada:
Eu dedico-me a bocejar a full
E a fúchsia parece bailarina.



Nicanor Parra, de Versos de Salón (1962)
Versão de HMBF





P.S.: há neste poema vários pormenores irónicos que me obrigaram a algum contorcionismo. Entre eles, o facto de o autor utilizar decassílabos. Tentei respeitar esse aspecto, embora nem sempre me tenha sido possível.

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