domingo, 18 de julho de 2010

MINIMAL EXISTENCIAL

De Paulo Tavares (n. 1977), não li o livro de estreia: Pêndulo (Quasi, 2007). Portanto, a minha estreia na sua poesia dá-se com este Minimal Existencial ─ [poesia para duas personagens e um narrador] (Artefacto, Maio de 2010). Ao que julgo saber, trata-se do primeiro livro de um novo projecto editorial, com sede na Sociedade de Instrução Guilherme Cossoul, apostado na divulgação de textos poéticos, teatrais e de ficção curta. No sítio da editora, ficamos a saber que Paulo Tavares é professor de línguas e trabalha numa tese de doutoramento na área dos Estudos Literários. Minimal Existencial repete no rosto aquela que parece ser a linha estética predominante em muita da poesia portuguesa mais recente: letras brancas sob fundo negro. Este pormenor não é despiciendo, sobretudo se pensarmos na relação que muitos dos nossos poetas mantêm com o real e com a palavra enquanto “ponto luminoso” que campeia no alcatrão da realidade. É óbvio que não é de hoje esta cisma, embora ela tenda a prevalecer sobre outras concepções, quer da realidade enquanto ideia construída e subjectiva, quer do texto poético enquanto parte integrante dessa mesma realidade.

Ao abrirmos o livro, deparamo-nos com uma espécie de extensão do título (um subtítulo?) que nos remete para uma dimensão ficcional/dramática do texto: [poesia para duas personagens e um narrador]. Este tipo de enunciação admite várias interpretações, sendo que a mais imediata (e talvez a mais tendenciosa) é a de que o material subsequente resulta de uma cisão entre o sujeito poético e a realidade que lhe é exterior. Deste modo, assistiríamos a uma encenação subjectiva da realidade à qual corresponderia um desprendimento do objecto encenado. Porém, este tipo de interpretação corre o risco de, ao separar as águas, confundir as margens. As experiências que temos da realidade são sempre subjectivas, pelo que a expressão resultante dessas experiências não pode senão ser encenação. Se advogarmos uma estética realista, é bom que estejamos cientes deste pormenor, sob pena de cairmos numa enfadonha ditadura do olhar. Por outro lado, se preferirmos o jogo das sombras imagéticas, não será má ideia reconhecermos que o suporte de toda a imagem, em suma de toda a imaginação, é o corpo material onde vamos buscar os contornos que definem as formas por nós arquitectadas.

A poesia de Paulo Tavares situa-se, pois, num campo de intersecção, no terreno dúbio e pantanoso onde as margens confluem. Essa é, quanto a mim, a sua dimensão mais apreciável. Nas suas cinco partes, a complexidade da estrutura do livro permite-nos entender uma manifesta inclinação para os processos de encenação do texto poético. Da morte a uma figurada «segunda vida» (p. 46), o que nos salta à vista é a absolutização da ruína, dos destroços, dos escombros. No entanto, alguns poemas parecem-me de menor intensidade, tornam o discurso algo amorfo e repetitivo, são de uma melancolia demasiado urbana, óbvia e sugerem uma espécie de pose que usurpa à poesia o crédito das imagens. Refiro-me, sobretudo, aos poemas do conjunto intitulado A evidência do dia, pejados de «sirenes ecoando contra / os edifícios devorados pelo impacto» (p. 21), dos «despojos do mundo moderno» (p. 24), de «ruas desertas, sujas» (p. 30), de «destroços / lançados pelo vento» (p. 34)… Esta encenação hiperbólica da ruína, que nos transporta para um cenário de guerra, perde na recorrência a imagens gastas e precipita o processo de degenerescência em curso.

Linhas de fuga e Caixa mitológica, os dois últimos conjuntos/momentos, parecem-me mais conseguidos. Nesses poemas a poesia de Paulo Tavares assume uma reflexividade até então quase inexistente. Torna-se mais interrogativa, mais enigmática, mas as imagens são fortes e menos dependentes de recursos plásticos algo batidos. Depois da ruína, o que fica? O que se segue à corrupção? Que resta da morte? A queda: abandono, solidão, esquecimento. «Quando morrermos, / não haverá divisões, nem fronteiras, nem estatutos. / Haverá, quando muito, um nome» (p. 61). Perante isto, não há que ser complacente, mas pode-se ser auto-irónico. E o autor é-o quanto baste. Chegamos a estes versos com a sensação de que tudo o que ficou para trás foi especialmente preparado para nos transportar até aqui. No fundo, a construção de Minimal Existencial ─ [poesia para duas personagens e um narrador] como que nos convoca para uma volta no corredor da ruína. É com declarada ironia que reconheço ser esta a Feira Popular dos poetas, entreter a vida com a elucidação da sua insignificância. Entreter a vida com a melancolia dos versos.
Escrito para o Rascunho.

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