quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ATLÂNTICO




À chegada, tínhamos ovos no frigorífico. É novo, assim como a televisão – objecto que não só dispenso, como evito. Pela manhã, ao abrir a porta da cozinha que dá acesso ao tanque, reparei numa caixa com batatas, pimentos, melancia, curgete, feijão verde… O Vivaldo passou por aqui de mansinho e deixou-nos presentes. Não há noite mal dormida, e são tantas, que me demova desta definição de poesia. Ela está nestes gestos simples, silenciosos, acolhedores. Voltarei a lembrar-me da poesia quando desafiar as ondas com mergulhos que não deixam lugar para dúvidas: estou a ficar velho. É simples, a constatação, mas nada acolhedora. Sinto-o nas articulações, sempre que venho à tona. Que se lixe. Refaço-me com uns bafos de pólen, uma bebida fresca no bar da praia, um conto de Chekhov: «In a society where coolness, hauteur and nonchalance are judged signs of breeding and good manners, one must hide one’s passions».

É o sexto ano consecutivo na casa da Esteveira. Sendo tudo idêntico, nada é exactamente igual. Tenho vindo a notar nos gestos uma dimensão ritualista que me conforta, o que não deixa de ser curioso num feitio avesso a rituais e desesperado perante a persistência das rotinas. Talvez a ausência de expectativas, uma predisposição para o acaso, uma indiferença às circunstâncias que nos julgam a conveniência das acções torne tudo mais ligeiro. Basicamente, ando-me nas tintas. Dispenso jornais, televisão, mundo. Levo Elizabeth Siddal e Dante Gabriel Rossetti de companhia e sinto-me seguro e feliz. Não preciso de mais. Estes dois já me dão quefazeres suficientes.

Sentamo-nos no Três Arquinhos a beber bagaço pela manhã, depois de um café e de uma generosa fatia de bolo de amêndoa. Olho para eles ainda com uma certa desconfiança, talvez do mesmo tipo daquela que me é dedicada pelos pedreiros, pelos pescadores e por outros mentirosos reunidos neste café onde a maioria dos veraneantes não pára mais do que o tempo necessário para comprar tabaco, beber a bica, esticar as pernas antes de se aportar em Sagres, Lagos ou noutra zona allgarvia de recomendável interesse turístico. Para a maioria, o Rogil é local de passagem. Para mim, tem sido local de paragem.

Com os Pré-Rafaelitas por companhia, embora numa relação intervalada por períodos distribuídos “ametodicamente” (um caderno de desenhos onde vou apontando os olhares, outras leituras que incluem contos, poemas, adágios para a alma), sigo caminho. Confesso que nunca nutri especial interesse pelo grupo de Rossetti, tendo sempre apontado as antenas para Byron, Percy B. e Mary Shelley. Leio o romance de Hélia Correia com um esforço que não evita os bons dias à velha que passa debaixo do seu chapéu de palha, enfiada num avental e nuns botins de borracha. Quero dizer que me distraio com alguma facilidade, a muita informação recolhida está organizada num modo que me prende apenas a espaços.

Reparo que na página 73 sublinhei duas frases: «Sofriam ambos de mal-estar social e sentiam os olhos um do outro postos no chão, sem arte para a conversa. Entre eles passava a mesma linguagem que não era a do amor mas a do exílio». Estas relações de um certo séc. XIX (vitoriano) entristecem-me, fazem-me sentir que pouco mudou. Mesmo tendo em conta que as mulheres se libertaram, na sua maioria, do tom adoentado que as tornava atraentes, não deixo de constatar que prevalece nas relações entre homens e mulheres um ideal cuja razoabilidade é a todo o momento desmentida pelos mais banais pormenores da chamada vida real. E isto é doentio, apesar de (continuar) a ser muito atraente.

É preciso desmentir os ideais com um pouco de azeite e vinagre. Aos românticos que ainda hoje vislumbram formosura onde os espartilhos disfarçam banhas, seria recomendável, no mínimo, um forno, carvão, uma grelha e várias carnes para churrasco. Não há melhor remédio para os incêndios do amor do que ocupar a mente com esses afazeres domésticos que Lizzie desprezava. Eu receito: atear o lume, descascar batatas, lavar tomates, cortar cebola, regar a salada, salgar as entremeadas, as salsichas, as febras, temperá-las, levar as carnes à brasa, assar pimentos, juntar tudo sobre uma mesa devidamente composta, pratos, copos, talheres, um bom vinho de premeio. E depois escrever nas bordas da página: ofereceste-me um segredo. Se a intimidade de um homem pode ser circunscrita pelos segredos que ele preserva, então tu ofereceste-me intimidade.

Poesia? Perguntem a Ruskin, ele é que é o crítico. Indiferente à resposta, penetro os dias com os olhos postos no Atlântico. «não tócupes, olha o atlântico! é lindo o atlântico, não é? caraças, até ponho caixa alta: Atlântico. Parece um navio». (Jorge Fallorca)

2 comentários:

Luis Eme disse...

boa...

e continuação de boas férias, "homem das conchas de papel".

hmbf disse...

andam estranhas conchas a dar à costa na costa vicentina ;-)