Era assim o Verão em 1855: «feiras, bailes e grelhados meio crus» (Adoecer, p. 193). Nada que entusiasmasse Lizzie por aí além. Ainda a levei à praia, a ver se ganhava cor, mas a senhora Rossetti não ajudou. Preferiu afogar-se em láudano a banhar-se entre as rochas atapetadas de vegetação da Carreagem. Descer aquelas arribas não é fácil. Não era no séc. XIX, sobretudo para mulheres frágeis com longos vestidos, não é no séc. XXI, para indivíduos carregados com filhos, lancheiras, chapéus-de-sol. O camarada Luís levou a cana de pesca. Enquanto tentava enganar robalos e safias, eu pescava as últimas páginas do romance de Hélia Correia já com uma “amante holandesa” debaixo de olho. Sem ser uma biografia rigorosa, não deixa de ser uma reconstrução do ambiente que fertilizou a irmandade Pré-Rafaelita e proporcionou a intrigante relação entre Gabriel Rossetti e Lizzie Siddal. Guardarei mais considerações para o regresso. No entretanto, vou-me refazendo do reencontro com velhos amigos: Byron, Shelley, Tennyson, Lewis Carroll, William Morris, Dickens, Swinburne, entre tantos outros, vagueiam por aquelas páginas reavivando estragos morais que importa preservar no devido lugar: «A disputa entre o que pode ser pensado e dito e aquilo que, em baixo voo, vai por dentro do coração humano e o seu horror prova-se irresolúvel e sem tréguas» (p. 279).
É assim o Verão em 2010: praia, campo e grelhados bem passados. O passeio à Amália estimulou a imaginação das crianças. Não chega atravessar, pelo asfalto, milheirais e estufas imensas, com o sol a cair sobre os girassóis e os “sarracenos” (assim chama Beatriz a umas aves brancas que proliferam por estes campos) depenicando o couro das vacas em pastoreio. É preciso ver fantasmas na casa abandonada. Dizem que pela noite seres com capacidades mediúnicas logram ouvir ali o canto da fadista. Tendo em conta a fauna que aprecia o local, com sua aromática flora ardendo entre os dedos e insuflando os pulmões de espiritualidade, não duvido. O percurso pedestre que ladeia um ribeiro de água doce, dentro de um túnel de refrescante vegetação, transporta a Matilde para estimulantes aventuras imaginárias. Estamos na selva, e não foi preciso sair da Costa Vicentina. Na Carreagem e na Amoreira, apesar dos cenários diversos, mantém-se esta inclinação para as fantasias hiperbólicas. Faz-me bem regressar a este olhar microscópico que nos leva a ver gigantescas criaturas ameaçadoras onde os adultos apenas vislumbram um caranguejo, uma estrela-do-mar, algas. Sem deixar de saber o que as coisas são, é agradável inventar-lhes novos sentidos, renovados significados, proporções desconformes. Poesia.
No regresso da praia, continuo a peregrinar na direcção do Três Arquinhos. Café e bagaço para começar o dia, a mesma dose para entrar na noite. Calhou que ontem a bola me prendeu os olhos ao monitor diabólico de uma caixa de Pandora. Uns tipos de camisola verde e branca, pelos quais em tempos nutri estouvada admiração, voltaram a excitar os olhos do adepto em estado de latência. Pretexto para uma travessa de caracóis, pão torrado, imperiais. Chamam-lhe o marisco dos pobres, a mim soube-me ricamente. Também não resistimos às filhoses. «É para uma boa causa», fizeram questão de informar as vendedeiras. «Estamos a angariar para a construção de uma igreja». Com filhoses desta categoria, disse-lhes, ainda acabam a construir uma catedral. Realmente, a Ana já tinha reparado na ausência. Vimos cemitério, mas igreja nada. Nunca tal foi coisa vista por aqui. Onde irão à missa? Perguntava a Ana. Eu já tinha avistado uma reunião evangélica, mas, de facto, nem uma pequena capela católica tinha ainda topado nas redondezas. Com campos destes, quem precisa de uma casa para Deus? Não deixa de ser ironia do destino ter-me calhado em fortuna um local sem igreja. Neste país, deve ser como encontrar uma agulha num palheiro. Porque a minha gulodice é mais forte que o ateísmo, não me importei de contribuir para a catedral. As gustativas agradeceram e o mundo sorriu de fé e de alegria.
Deus Nosso Senhor estava atento e quis recompensar-me. Hoje, enquanto preparava a brasa para o almoço, com um copo de vinho na mão − «wine, that purveyor of dreams and gaiety» (Guy de Maupassant) – fui visitado por uma criatura angélica. Uma borboleta esplendorosa pousou nas flores do quintal e disse: trago-te a luz das coisas simples, aproveita enquanto a noite não chega. Depois voou. É tudo o que sei.
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