quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A AUTOMANJEDOURA



Os tempos modernos começaram quando, ao inventar o relógio, o homem passou a organizar-se em função da cadência que quis impor à natureza. Daí à cronometragem de tarefas, à aceleração dos ritmos, à rentabilização do tempo, aos horários, às estatísticas, à automatização dos comportamentos, foi um pequeno passo. É o plano de um relógio que está no início de Tempos Modernos, o filme de Chaplin. Após a revolução industrial, a grande questão foi sempre a de como garantir o direito à felicidade tornando a vida rentável. Tornar a vida rentável significa dar-lhe utilidade, daí que não seja de estranhar aquela quase justaposição de planos que compara os operários a caminharem para uma fábrica com uma vara de porcos a caminhar para um matadouro. Basicamente, ser rentável implica uma espécie de metamorfose suína. Escravos do trabalho, os homens aprendem a viver sem terem tempo para se coçar. Começaram por ser escravos da natureza, passaram a ser escravos do fogo, tornaram-se escravos da comunidade, foram escravos dos chefes, da religião, foram escravos da própria escravidão, acabaram escravos do tempo. E disso fizeram o grande negócio pós-moderno. Enquanto os “presidentes” se entretêm com puzzles e primeiras páginas, controlando do alto da torre as manadas em alienadora produção, o mundo progride e avança. As máquinas foram substituindo a mão-de-obra, as novas tecnologias vão substituindo as máquinas, sendo provável que daqui a uns tempos qualquer coisa que não sabemos bem o quê venha a substituir as novas tecnologias. Podemos sonhar com paraísos perdidos, com a felicidade de mão dada com o amor dentro de uma cabana, podemos aspirar apenas a uma vida mais serena ou a regressarmos a uma “era dinossáurica”, selvagem, pura. Pergunto-me de quem ou do que será escravo o albatroz? Talvez de poetas que lhe invejam o voo e lhe admiram a resistência que, definitivamente, deixaram de ter. No filme de Chaplin há muitas cenas que se tornaram célebres. Numa delas, um inventor tenta convencer o dono de uma fábrica a investir numa automanjedoura. O objectivo da máquina seria eliminar a hora de almoço, um período de descanso que, como todos os períodos de descanso, traz sempre graves prejuízos às empresas. A automanjedoura, tal como nos foi apresentada no filme, não vingou. A sua inutilidade era proporcional à sua ineficácia. Em suma, não era prática. É um pouco como toda a arte. A sua inutilidade é proporcional à sua ineficácia; porque não é prática, continua a ser meramente decorativa, transformou-se em objecto de luxo, questão de mercado; deixou de ser ponto de ruptura e energia fracturante, para passar a ser mero pretexto de facturação. Mesmo quando pretende provocar, fá-lo protegida por uma ampola humorística que esvazia o conteúdo do seu potencial revolucionário. Não está em tensão com os paradigmas, é parte integrante da máquina auto-reprodutiva dos paradigmas. Escasseiam os exemplos de uma arte actual que se afirme por estar em colisão com um sistema aglutinador de artistas, o mesmo sistema que impõe a sua ditadura humorística, a tirania do design, o despotismo do aparecer. Na verdade, constata-se que a fama é a maior inimiga da fama, que o poder é o maior inimigo do poder. Conquistados certos patamares de estatuto, faz-se tábua rasa de tudo o que ficou para trás e age-se como o antigo inimigo. Na poesia actual, este esgotamento é ainda mais evidente. Onde poderíamos esperar um discurso alternativo, deparamos quase invariavelmente com uma “rotinização” do poético que esvazia a poesia do seu sentido de cisão, do seu significado de suspensão da monotonia que atravessa a vida. A poesia é agora parte integrante dessa rotina, desse tédio, dessa monotonia, dificilmente se distingue de um mero apontamento diarístico, de uma declaração de intenções, do preenchimento de um recibo verde. Já ninguém busca a excepcionalidade da palavra, todos querem ser aceites, reconhecidos e recomendados pelos caudilhos. Do hospício para o desemprego, o romântico de Tempos Modernos vê-se inadvertidamente envolvido numa manifestação. Equivocadamente acusado de liderança comunista, acaba detido. É libertado depois de impedir a fuga de dois presos que andavam a traficar cocaína dentro do estabelecimento prisional. Por que o fez? Por mero acaso, sem que a mínima intenção lhe comandasse as acções, sem que houvesse nele qualquer motivação. Na verdade, ao saber que vai ser libertado, pergunta se não pode ficar só mais um bocadinho preso. Tinha tecto, cama lavada, comida. Sabia que fora da prisão esperava-o a perigosa aventura da vida, aquela que a maioria dos criadores da actualidade evita confrontar, por ser muito mais confortável manter-se preso, servil, recomendável, útil.

2 comentários:

Tinoco disse...

Muito bom texto, e perfeitamente de acordo no que toca a poesia. Há algum tempo atrás pensava que só uma geração de decadentes a poderia, mas agora nem isso.

hmbf disse...

Agradeço o comentário.