quinta-feira, 2 de setembro de 2010

ESTADO MÍNIMO

Vivemos numa sociedade onde as pessoas podem queixar-se e lamentar-se, embora com prudência e algum pundonor. A liberdade de expressão não é um dado adquirido, é um território a cultivar sob a permanente ameaça das novas formas de censura. De facto, o Estado é um monstro frankensteiniano, a burocracia bloqueia muitas aspirações individuais, os cidadãos manifestam o seu desagrado ou a sua indiferença sem que sejam óbvias as suas preocupações colectivas. Na base das queixas, estão quase sempre sintomas individuais ou de grupo. E raramente pressentimos nessas queixas uma verdadeira vontade de mudar. 36 anos de democracia com o poder repartido entre duas facções em tudo similares denotam uma espécie de esgotamento ideológico. Parece que nada há a fazer senão resignarmo-nos a ser governados por proxenetas.

Penso nisto terminada a leitura de Anarquia, Estado e Utopia. Originalmente publicado em 1974, foi o primeiro livro do filósofo Robert Nozick (1938-2002). Escrito como reacção à obra A Theory of Justice (1971), de John Rawls (1921-2002), propõe um Estado mínimo como sendo o sistema político que melhor garante os direitos das pessoas. Sendo assim, o Estado mínimo seria preferível à anarquia, às utopias e aos Estados ditos paternalistas. No prefácio, Nozick deixa bem claro que a sua intenção é debater «a natureza do Estado, as suas funções legítimas e as suas justificações», acrescentando que «um Estado mínimo, limitado às funções estritas de protecção contra a violência, roubo, fraude, execução de contratos, e por aí em diante» é o único que se justifica. Ignoramos até onde poderá chegar o «por aí em diante».

Quando se defende que o Estado não pode fazer uso dos seus instrumentos coercivos para obrigar uns cidadãos a ajudar outros, como se pode defender a existência de um Estado (por mínimo que seja)? A existência de todo e qualquer Estado fundamenta-se nesse princípio de cooperação e entreajuda que decreta deveres e direitos como garante de uma maior justiça e de uma mais alargada igualdade de oportunidades. Não há outra razão que justifique a existência do Estado senão o temor da desigualdade que está na origem dos anseios de justiça. É por temerem a invasão de um espaço que tomam por seu, que os homens hipotecam parte da sua liberdade e entregam a “meia dúzia de eleitos”, para o mal e para o bem, o governo de uma boa parte das suas vidas.

Sucede que, ao defender o Estado mínimo, Nozick, com ou sem intenção, fertiliza o campo onde cresceu e vingou o capitalismo selvagem que nos trouxe onde agora estamos, entregando a alguns o poder de arrumar arbitrariamente a vida da maioria. Ao preocupar-se quase exclusivamente com os direitos individuais, justificando as suas posições com exemplos frequentemente rebuscados, como que perde o senso à realidade e, paradoxalmente, acaba por justificar um sistema que escraviza os indivíduos em vez de os respeitar na sua natural heterogeneidade - tornando-os irremediavelmente dependentes dos condicionalismos sociais e culturais onde estão inseridos.

O Estado mínimo é o Estado das seguradoras, é o Estado das clínicas e dos hospitais privados, é o Estado das grandes superfícies comerciais, dos monopólios económicos. Se não era essa a intenção, é essa a consequência. Logo na primeira parte do livro, especialmente atenta ao problema das restrições impostas pelo Estado, Nozick afirma, por exemplo, que «uma pessoa pode escolher fazer a si própria (ou permitir que outro lhe faça) seja o que for, a menos que tenha adquirido uma obrigação perante um terceiro de não o fazer ou permitir» (p. 92). Em teoria, isto faz todo o sentido. A menos que, na prática, o problema não esteja tanto no poder fazer como no dever fazer. Porque não estamos isolados no mundo, aquilo que fazemos a nós próprios terá consequências na vida dos outros. Um exemplo radical: certo pai pode matar-se; mas deverá fazê-lo, isto é, será moralmente aceitável que o faça tendo em conta a existência de um filho menor a seu cargo?

Tal como o egoísmo, as obrigações perante terceiros são inerentes à condição humana. Ninguém está livre delas. Há que gerir todos os elementos da melhor forma possível. O mesmo se passa quando falamos de obrigações dos cidadãos para com o Estado e do Estado para com os cidadãos. Afinal, por que nos obrigam a ir à escola? Para que nos são cobrados impostos? Porque violam desde cedo a nossa privacidade exigindo-nos uma matrícula identitária? A inviolabilidade dos indivíduos é uma ideia simpática, mas não confere com a realidade. A vida em sociedade conquista-se porque os indivíduos são violáveis, permeáveis à educação e à assimilação de valores com os quais poderão estar mais ou menos de acordo.

O Estado mínimo não garante sequer um pedaço de terra onde possamos cultivar isoladamente a nossa sobrevivência, não oferece condições mínimas para a conquista do mais básico dos direitos, ou seja, uma vida feliz. Porque é impossível conceber a vida feliz independentemente do exercício da liberdade, como esperar de um Estado justiça quando tudo o que tem para propor é um serviço de protecção pago? E quem administra esse serviço? Como? Em que circunstâncias? Com que critérios? Muitos dos paradoxos sugeridos e dos problemas levantados por Nozick são estimulantes de um ponto de vista académico, embora por vezes pareçam mais do domínio da ficção científica do que da política prática. Mas a dúvida que se nos coloca hoje é mais simples: assim como não vale a pena contratar um avançado para ser igual ou inferior aos que já temos, valerá a pena varrer certa trupe do poder para vir outra igual ou pior?

Sem comentários: