terça-feira, 21 de setembro de 2010

UM VALE DEMASIADO VERDE



Não sou um admirador indefectível da obra de John Ford (1894-1973). Há nos seus filmes uma inclinação moralista que me chateia, ainda que em muitos momentos se revele desconfiada da bondade das instituições. Filmes como Judge Priest (1934), How Green Was My Valley (1941) e The Sun Shines Bright (1953), atestam-no. Há neles uma espécie de cristianismo puro, talvez algo ingénuo ou utópico, que salienta a crítica das instituições ao mesmo tempo que apela à emoção enquanto definidora do bem que as leis, na sua cega vontade de condenar, acabam por perverter. O que neles há de desprezível é o elogio do sacrifício. How Green Was My Valley, filme considerado predicante, pueril, vulgar e medíocre por Georges Sadoul, transporta-nos para os dramas de uma família de mineiros no País de Gales. A história é narrada pelo elemento mais novo da família, que já em idade adulta lembra o quão verde foi o vale nos seus tempos de criança. A ideia de paraíso perdido que subjaz ao argumento é, de facto, vulgar, assim como não deixa de ser pueril a fé que o narrador da história deposita no poder da memória. Outro elemento que me desagrada nos filmes de Ford é o facilitismo com que sustém a natureza trágica das relações encenafas recorrendo a figuras picarescas que lhe servem de mero adereço humorístico, como que cedendo às crises asmáticas e taquicardíacas do espectador. Típico de quem busca grandes êxitos de bilheteira. De um modo mais depurado, Michael Mann parece-me um fiel herdeiro destes ensinamentos. A tragédia dos mineiros no Chile fez-me regressar a How Green Was My Valley. Naquele vale está tudo o que a tragédia grega já tinha, dos conflitos familiares à disputa da razão, das oposições sociais à intriga comunitária. Naquele vale uma criança fez-se adulta aprendendo a lutar contra as adversidades da vida, a cobardia dos diáconos e das línguas viperinas não deixou de condenar um amor impossível, jovens revolucionários partiram para a América em busca de uma vida melhor, os bons sucumbiram, deixando nos que ficaram a memória dos seus actos. Naquele tempo, a América era um sonho para mineiros explorados (juízo que deve ter valido pelo menos um Óscar). Tudo o que é preciso saber acerca da vida está naquele vale, tudo o que é preciso saber para que nunca os explorados deixem de lutar contra os exploradores mesmo que a derrota seja certa. No entanto, nada disto é suficiente para que o ânimo se levante. Regressamos ao verde do vale como quem regressa a um conto de fadas. Não saímos de lá sujos pelo carvão, mas assim que saímos sabemo-nos para sempre condenados ao conforto de uma sala de cinema. Antes a vida nos obrigasse a descer aos infernos.



Nota: fui ver o que o tempo fez a Roddy McDowall, o rapazito do filme. Não fez nada de jeito.

7 comentários:

Sérgio Lavos disse...

Oh, Henrique, está a ser tão injusto com o Ford... este não é o meu preferido dele, e terás razão em quase tudo o que dizes, mas não deixa de ser um filme espantoso, se esquecermos um pouco as debilidades do argumento - uma fotografia fantástica, a arquitectura da aldeia, os enquadramentos (aquela cena da igreja com a árvore), a marcha dos mineiros passando pela aldeia. Até me parece um abuso (sem maldade) comparar Ford com o pantomineiro Mann, de quem não gosto nem pintado.
Sugiro que revejas sem preconceitos em relação ao moralismo ingénuo (que tem) da história. Eu apenas quando vi a 2ª vez, recentemente, fiquei convencido.

cumprimentos.

Sérgio Lavos disse...

Ah, e o comic relief que Ford procura é sempre interessante. Estou-me a lembrar por exemplo de Os Três Padrinhos: a certa altura, não temos a certeza se o filme é uma farsa ou uma tragédia, mas a cumplicidade dos três fugitivos nasce das piadas que eles trocam. Brilhante.

hmbf disse...

P.S.: não tenho a certeza, mas acho que nunca vi "Os Três Padrinhos".

Sérgio Lavos disse...

Funciona muito bem, sim, na trilogia da cavalaria. Três padrinhos, com o Jhn Wayne e outros dois de que não me lembro (e não vou ver no IMDB). Três fugitivos que dão por si com uma criança nos braços. E têm de fugir e levá-la.
OK, e claro que não comparas Mann a Ford.
Estamos de acordo, então: um filme que não é perfeito não deixa de ter coisas perfeitas.

jaa disse...

Eu também percebo o que quer dizer mas, quando se trata de Ford, recuso-me a ser demasiado analítico. E grande parte do cinema "clássico" tinha uma "inclinação moralista" e não fugia a agradar ao público. Apesar da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, eram tempos mais ingénuos. As "figuras picarescas" não pareciam deslocadas precisamente por causa dessa ingenuidade (penso eu de que). Talvez o McCarthismo tenha funcionado como ponto de viragem para os argumentistas e realizadores de Hollywood. E depois apareceram Peckinpah, Penn, Scorsese, etc...

(Convenhamos que, de qualquer modo, ainda hoje os americanos são ingénuos - ou talvez optimistas - e moralistas.)

(E tenho de rever o filme, que já não vejo há uma eternidade.)

hmbf disse...

Mas eu gosto muito de alguns filmes do John Ford. Só não gosto muito de todos. :-)

João Miguel Almeida disse...

O John Ford fartou-se de realizar filmes. Não me lembro bem dos filmes que são aqui referidos. Mas gosto muito de «O homem que matou Liberty Valence», que não me parece nada ingénuo e de «A desaparecida/The Searchers» que me parece estar para além de qualquer justficação moralista.