quarta-feira, 3 de novembro de 2010

EM CIDADE ESTRANHA

Houve um tempo em que os poetas concentravam muito do seu talento a louvar feitos heróicos. Nuvens misteriosas abateram-se sobre a Terra, perdendo os poetas o sentido épico da existência e voltando-se temerosamente para os céus. O misticismo começou a desaparecer quando paixões mais humanas desviaram os homens dos itinerários de Deus. Cantou-se então o amor carnal e o desespero, as paixões, a coragem, a liberdade, mas também o fracasso. E cantou-se a natureza, elevando-se as suas forças e a sua beleza a píncaros sagrados. A Revolução Industrial imprimiu uma nova paisagem, o panorama bucólico das aldeias era agora transposto pelo caos das cidades. Quando nada mais havia para cantar, os poetas tomaram nas mãos a desconstrução das formas. Surgiu aquilo a que hoje chamamos de vanguardas. O verso livre vingou, a linguagem tornou-se ela própria tema, o conteúdo fundiu-se com a forma. A Segunda Guerra Mundial trouxe de novo a sensação de ruína, a descrença nas conquistas humanas, o afastamento dos ideais e das ideologias. Ao mesmo tempo que criava, o homem era monstruoso. Desde então, sem Deus e sem fé na raça humana, os poetas cantam-se a si próprios. E, num individualismo relativo, olham para o mundo com descrença, desesperando por “refúgios efémeros” onde encontrar justificação para a caminhada.

Tomem-se de exemplo estes versos de Daniel Francoy (n. 1979): «a poesia ─ verdade vazia e inútil ─ / não há de confessar aos ventos / o meu medo de morrer sozinho» (p. 41). São versos vulgaríssimos que podiam ter sido escritos por centenas de poetas da actualidade. A desinflação do poético é um dado adquirido. Já ninguém aguarda da poesia salvação para o desespero. Quem eventualmente aguarde, só pode ser tomado por lunático. No entanto, os poetas insistem nos versos, guerreiam entre si, disseminam a palavra por inúmeros weblogs, polemizam, publicam livros, celebram essas publicações em lançamentos, recitais, convocatórias mais ou menos familiares, mais ou menos concorridas. A «verdade vazia e inútil» acusada à poesia é apenas um elemento retórico que pretende produzir um efeito estético. Não há verdade alguma naquela acusação, apenas e tão-só um estilo que subjaz a algo muito mais útil: a demanda das coisas belas. Não estranhemos, pois, que na poesia de Daniel Francoy o «cheiro de terra queimada» (p. 25) conviva com «a pureza da terra vermelha» (p. 35). É dessa saudável contradição que surge a melhor poesia.

Em Cidade Estranha seguido de Retratos de Mulheres (Artefacto, Junho de 2010) dois conjuntos de poemas são colocados lado a lado sem razão aparente. No posfácio, Nuno Dempster chama a atenção para «a insatisfação que a realidade causa, algum desencanto e a deterioração do meio em que se vive» que caracteriza os poemas do primeiro conjunto, ao passo que o segundo conjunto está marcado pela «alegria de viver». Simplificando um pouco mais, diríamos que as mulheres surgem, na sua clássica qualidade de musas (notar evocações de Camões e de Cesário), enquanto refúgios da beleza que a vida citadina ameaça. O sujeito poético predominante no primeiro conjunto é uma espécie de flâneur que descreve sem deslumbre nem encanto a transitoriedade dos dias, a sensação de perda e de inutilidade que a passagem das horas edita na pele daquele que atravessa ruas e praças, sente «as manhãs de forte luz» e diz: «são a morte do divino: / deus é uma palavra oca» (p. 11). Forçado a substituir o belo pela lamentação da efemeridade, o poeta resvala num sentimento elegíaco da vida. Para ele, não importa tanto a utopia da felicidade como parece ser crucial sublinhar os breves momentos de alegria que o resguardam de uma morte sempre a florescer.

Dylan Thomas, evocado em epígrafe no poema da p. 51, é a voz que mais ecoa: «O seu derradeiro verso era os vermes em sua face / iluminada pelo sol que já irrompe fustigante» (p. 13). Mas há algo de intrigante nesta sensação de perda que habita os versos de Daniel Francoy. A morte que ressoa dentro de tudo, lançando o homem num exílio interior sem salvação aparente, impele a uma Pergunta Para Ficar Alegre: «Se a vida perdura, único milagre possível, / e se o aroma das flores volta após o inverno, / porque não pensar que coisas simples e pequenas / ─ como o amor ou a tristeza de um homem ─ / tenham solução e que a alegria vai nascer / antes de raiar a próxima aurora?» (p. 26) É nesta possibilidade que notamos uma contida inflexão do discurso. A aridez dá lugar à garapa gelada (bebida típica do Brasil) ─ «nenhuma tristeza resiste a uma garapa gelada» (p. 37) ─, a «cidade estranha e mesquinha» (p. 54) povoa-se de belas mulheres, corpos de raparigas sob o luar alto, música e sonho. É nesta balança que o poeta sopesa a vida, é desse balanço que surgem os poemas. Digamos que o olhar mantém-se abatido, mas recusa desistir sobre o seu próprio abatimento. E isso é bom.
Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

Mariana disse...

"É nesta balança que o poeta sopesa a vida, é desse balanço que surgem os poemas. Digamos que o olhar mantém-se abatido, mas recusa desistir sobre o seu próprio abatimento. E isso é bom."

Estou aprendendo coisas novas - e boas - na leitura deste blog.

hmbf disse...

Fixe. :-)