quarta-feira, 17 de novembro de 2010

ESPARSA

Amigo Van Zeller, venho a confessar-me. Quando era adolescente, julgava os 27 anos uma idade "porreira, pá" para se morrer. James Douglas Morrison, Jimi Hendrix e Janis Joplin, todos eles referências saudáveis, tinham morrido com 27 anos. Kurt Cobain também, mas quando Kurt Cobain morreu eu já não era propriamente adolescente. Nessa altura eu contava 20 Invernos. Perante a proximidade dos 27 comecei a fazer outras contas. Cesário Verde morreu com 31, Fernando Pessoa com 47, Camilo Pessanha com 58… 47 anos, caro Van Zeller, começa a parecer-me uma boa idade para morrer, embora ultimamente me tenha lembrado amiúde de Ruy Belo. Num texto que devia ser de leitura obrigatória pelo menos 1 vez por mês, Joaquim Manuel Magalhães diz que «tudo aquilo que não aconteceu a Ruy Belo mostra os mecanismos da merda em que nos fazem chafurdar». Depois lembra o homem calado, sem partido político, licenciado em Filologia Românica, licenciado em Direito, doutor em Direito Canónico, com uma tese sobre literatura, tradutor de Blaise Cendrars, Saint-Éxuppery… Só defeitos. Em 1977 havia gente no departamento de Literaturas Românicas que ensinava poesia portuguesa e não sabia quem era Ruy Belo. Uma pessoa não é obrigada a saber tudo. Perante isto, Joaquim Manuel Magalhães pergunta o fundamental: «Um País destes pode dar-se ao luxo de ter um Doutor e licenciado em dois cursos a dar aulas nocturnas no Cacém? Quando não as queria dar?» A resposta é óbvia, tanto pode que teve. E tem. Pelos vistos, continuará a ter. Num país onde os cretinos que mandam dizem quaisqueres em vez de quaisquer, vocêzes em vez de vocês, fostes em vez de foste, póssamos em vez de possamos, é normal que assim seja. Ser normal significa que alguém deixou que assim fosse. A gente ouve os nossos políticos a discursar, os nosso empresários a perorar, os dirigentes disto e daquilo a papaguear e fica com a sensação de que vive num país de analfabetos funcionais. E depois há aqueles que lambem as botas aos cretinos que mandam, intermediários da cretinice com um apurado sentido da obediência. São os pajens da mediocridade. Não nos admiremos, portanto, do estado a que as coisas chegaram. Se aqui chegaram, é porque os cretinos e os pajens mantêm-se incólumes, sem rosto nem nome. Como chegam onde chegam é um mistério digno de Sherlock Holmes. Pergunto-me, camarada Van Zeller, quem fodeu a vida a Ruy Belo? Pardon my French. Ninguém sabe, supomos apenas tratar-se de gente que fez as suas vidas ocupando cargos, desempenhando funções, saindo ilesos para o esquecimento. Mas o esquecimento não se vinga da incompetência, muito menos faz justiça. Vem ao caso uma Esparsa de Camões:

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais me espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
Anda o mundo concertado.

Será sina? Às vezes cremos haver gente que não só não nasce com o cu virado para a lua como parece ter nascido com o cu enterrado na lava do Inferno. Serão versos ressentidos e remoídos os do autor de Sôbolos rios que vão? Será conversa ressabiada a de Joaquim Manuel Magalhães? Por mim falo, se há coisa de que me posso gabar é de ter boa memória. Hei-de deixar ao mundo o meu ínfimo testemunho, devidamente documentado para que ninguém corra o risco de trocar os nomes às bestas. Ruy Belo morreu com 45 anos. Faltam-me mais ou menos 9 para cumprir o serviço. «Babilónia ao mal presente, / Sião ao tempo passado».

4 comentários:

Luis Eme disse...

alguns ainda devem andar por ai...

hmbf disse...

não duvides

Hugo Milhanas Machado disse...

O Portugal detergente, como escrevia RB.

hmbf disse...

Detergente, mas porco.