domingo, 26 de dezembro de 2010

A PRIMAVERA HÁ-DE CHEGAR, BANDINI

Perdoem-me os erros, que nada representam ao pé daquilo por que temos passado nos últimos tempos. Terminei agora mesmo a leitura de A Primavera há-de chegar, Bandini. Dos livros de John Fante que li até hoje, este foi aquele que menos me cativou. O facto de a acção se passar em plena época natalícia não ajuda. Tenho com o Natal uma relação semelhante à que cultivo com a política, abstenho-me antes que dê em doido. Seja como for, trata-se de um Fante. Há que dar o benefício da dúvida. Quem não estiver familiarizado com o universo do autor norte-americano (nasceu em Denver no ano da graça de 1909), saiba que há nele um sentido de humor que se revela ainda muito incipiente neste primeiro tomo da saga conhecida como The Bandini Quartet: Wait Until Spring, Bandini (1938), The Road to Los Angeles (apenas publicado em 1985, apesar de ter sido o primeiro a ser escrito), Ask the Dust (1939) e Dreams from Bunker Hill (1982). Também com tradução de Rui Pires Cabral, a Ahab tinha editado entre nós Ask the Dust (Pergunta ao Pó, 2009). Reincide agora na história de Arturo, alter-ego de John Fante, com A Primavera Há-de Chegar, Bandini (Setembro de 2010).

No centro das atenções está uma família, entre a qual se destaca o jovem Arturo, aqui com 14 anos. Os restantes são o pai Svevo, a mãe Maria e os dois irmãos August e Federico. Com as raízes na Itália, vivem em Rocklin, Colorado, as dificuldades da integração. São pobres, deslocados, mas orgulhosos. O narrador não poupa nas imagens que evidenciam essa pobreza. Ao primeiro parágrafo fala-nos dos «buracos nas solas das botas» do pai de família, um assentador de tijolos que gosta de beber o seu copo enquanto joga uma partida de póquer com os amigos italianos: «Estava enregelado e tinha buracos nas solas das botas. Nessa mesma manhã forrara as botas com pedaços de cartão de uma caixa de macarrão. O macarrão ainda não fora pago. Ao forrar as botas, não deixara de pensar nisso» (p. 13). Os pormenores são reveladores da prosa fria que nos espera. Não chega a John Fante dizer que as botas estavam rotas, é preciso reforçar a imagem da pobreza com uma caixa de macarrão que ainda não tinha sido pago.

Já a religiosidade de Maria Bandini, uma dona de casa remoída pelo ciúme, ocupada na educação dos três filhos, é-nos assim descrita: «Maria não precisava de livros nem revistas. Tinha o seu próprio meio de evasão, o seu caminho privado para a satisfação: o rosário» (p. 65). Na voz do narrador ecoam os sentimentos do mais rebelde dos três filhos: Arturo. Os complexos de integração perseguem-no. Preferia chamar-se John a Arturo, Jones a Bandini, preferia ser americano de gema, viver em Denver, preferia frequentar um liceu público a andar numa escola católica. Fala do pai tanto com admiração como com desprezo, fala da mãe com ternura e uma espécie de repugnância amordaçada. Há ainda Donna Toscana, a mãe de Maria, sogra de Svevo, com quem este não pode nem à distância. Uma inesperada visita da avó Donna, mulher de «língua venenosa como uma víbora», espoletará o conflito familiar sobre o qual se ergue a narrativa. No entanto, o pilar é frágil.

Muito mais interessante que as desavenças entre Svevo e Maria é a forma como Arturo vai crescendo interiormente na relação frustrada que mantém com o que o rodeia. Os melhores momentos do romance saltam da consciência de Arturo para a página. Desde logo a sua relação paradoxal com a religião. Veia herdada da mãe, a religião é no jovem Arturo uma ameaça incompreensível, fonte de inquietas reflexões e temores disparatados. O Capítulo Cinco é todo um tratado sobre as dúvidas religiosas que podem assolar um jovem da estirpe de Arturo Bandini: «Arturo Bandini estava bastante certo de que não iria para o Inferno depois de morrer. O Inferno era o destino daqueles que cometiam pecados mortais. Arturo sabia que tinha cometido muitos, mas a confissão salvava-o. Acreditava que chegaria sempre a tempo à confissão ─ ou seja, antes de morrer. E batia em madeira sempre que o assunto lhe acudia ao espírito ─ para garantir que chegaria sempre a tempo à confissão. Assim, Arturo estava bastante certo de que não iria para o Inferno depois de morrer. Por duas razões. Em primeiro lugar, a confissão; em segundo lugar, o facto de ser bastante veloz» (p. 93).

Infelizmente, parágrafos como o supracitado não abundam neste romance. Ao crescimento de Arturo, Fante prefere explorar paralelamente a relação conflituosa entre Svevo e Maria. O Natal conflituoso, cheio de provações e ausências, resvala amiúde num sentimentalismo de que o próprio narrador parece estar consciente. É como se não houvesse alternativa. O que aqui está em causa é a «linguagem da vida» (p. 176). A presença permanente da neve debaixo de solas rotas tinge o cenário e adensa o elemento essencial da obra: a esperança. No fundo, é disso que se trata quando falamos na Primavera por chegar. A esperança de que a família retome o seu curso, o pai volte a ter trabalho, a mãe volte a ser bonita, a amada ressuscite num qualquer recanto da memória, agora já não sumida no gelo, mas erguida no meio de vastos campos verdejantes, em flor. A Primavera por que Arturo anseia é um eco que ressoa sobre si próprio a vanidade da existência. Para se manter vivo, é preciso acreditar que a qualquer momento o Sol se ergue sobre o gelo e transforma a neve em água: elemento da vida. E a pergunta final só pode ser: que tipo de pecado é a esperança?
Escrito para o Rascunho.

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