Também com tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas, A Cidade Longínqua é a segunda aposta da Ovni num poeta catalão. A primeira foi em Casa da Misericórdia, de Joan Margarit. Màrius Torres (1910-1942) nasceu em Lleida. O pai era médico de profissão, embora tenha ocupado diversos cargos políticos. A mãe, professora, faleceu em Março de 1928, quando o poeta era ainda um jovem. Màrius seguiu as pegadas do pai e acabou por se formar em medicina. Realizado o doutoramento em Madrid, regressou a Lleida e contraiu tuberculose. Internado no sanatório de Puig d’Olena, resolveu então ocupar parte do tempo que lhe restava a escrever poemas. Deixou-nos uma obra breve, intensa, que apenas veria a luz do dia 5 anos passados sobre a sua morte. No prólogo, os tradutores desta antologia delimitam os «eixos que percorrem o conjunto da sua obra: a morte, a guerra, o amor, a música e a espiritualidade». Tendo os poemas nascido num ambiente fatídico, não é de admirar que aparentem frequentemente uma consciência lúgubre da vida: «Tenho preguiça de ainda viver amanhã… / Mais do que a dor sofrida, magoa-me / a dor que se prepara, a dor que me espera…» (p. 27). A morte acaba por ser o tema essencial, aqui e acolá adiado por delicadas evocações de Händell, Mozart, Corelli, Schumann e Couperin. A música surge então como uma arte à qual se ligam as palavras. Metáfora da própria existência, ela acompanha os derradeiros gestos como banda sonora de um peito carregado de angústias e incerteza, mas também como motivo de reflexão e auto-exame: «Sou tantas vezes como uma corda bamba e vencida / que vibra mal! / Com um ritmo pesado, embaraçoso e lento, / átona, corrompida, / corda desafinada, a minha alma mente. / Quantas vezes a quis muda / para não ouvir a música falsa do seu tom!» (p. 31). Vários poetas são citados: Milton, Baudelaire, Blake, Musset, Pascoaes, Joan Sales. E é nestes diálogos que, muitas vezes, os poemas de Màrius Torres realizam uma autópsia das debilidades humanas. Veja-se, a título de exemplo, este soneto que tem por mote um verso de Alfred de Musset:
Eu disse ao meu coração, ao meu pobre coração:
─ Não tens vergonha da tua fraqueza?
A glória, o amor, a pândega, o ouro,
não saberão tentar a tua preguiça?
Eu disse ao meu coração, ao meu pobre coração:
─ Odeia, fere, embriaga-te, beija,
bate mais forte, grande cobarde, ou morre
para sempre de desgosto e tristeza.
Ou talvez já estejas morto, tu, que nem sabes o que vale
o canto de um alaúde, o estouro de um punhal,
uma clara noite, uma rosa terna?
E o meu pobre coração, o meu coração disse-me:
─ Para quê dar mais cinzas ao esquecimento?
E, velho, sorriu-me, sem perceber nada.
Portanto, o que eventualmente pudesse existir de lírico, romântico ou mesmo simbólico nestes poemas é adulterado por uma reflexividade implacável acerca das determinações a que a existência de um ser humano se vê reduzida nos limites da vida. Mesmo quando se aventuram pelos caminhos do amor, como acontece nas magníficas Canções a Mahalta, dedicados a Mercé Figueres, a companhia mais presente na vida de Màrius Torres durante a estadia no sanatório de Puig d’Olena, os versos revelam uma espiritualidade ambígua, nublada, como uma espécie de pressentimento do olvido a que está condenada toda e qualquer existência. Entre outros, sobressai mais este soneto, forma a que o poeta recorreu frequentemente com inegável mestria:
PRESENÇA
Como se as tuas mãos sobre os meus olhos ainda
pudessem, como antes, deter-se com amor,
gosto de fechar os olhos quando penso em ti. Sonora,
a tua lembrança move-se na penumbra clara…
Volto a ouvir os teus passos lá longe, na luz.
Meço, em tom e ritmo, a distância.
Agora, deténs-te perto. Aspiro, rosa rançosa,
uma rajada ardente do teu antigo perfume!
As lembranças, os sentidos, toda a minha vida,
calam-se perante a angústia vigilante do ouvido
que te persegue no silêncio onde te recolhes.
Se agora esticasse os braços na escuridão, ainda
poderia amparar-te, sonho de cada dia.
Mas já não estarás aqui quando eu voltar a abrir os olhos.
O que nos remete para uma invocação da mãe perdida termina em reflexão sobre a natureza do estar. Esta presença ausente, aplicável a várias circunstâncias e materialmente indefinível, é a matéria da própria memória, assim como, ao fim e ao cabo, o alimento do esquecimento a que todos estão irremediavelmente destinados. A espiritualidade que emana desta poesia tem a tristeza e o encanto do condenado, sugere uma ambivalência que ora pende para uma esperança repleta de dúvidas, ora se inclina para a saudade do nunca vivido: «Gosto tanto da minha saudade, / que, se ao país que choro, / um anjo me quisesse guiar repentinamente, / diria ao anjo: espera, espera um momento, / agora não posso ir, não vês que estou a morrer?» (p. 147) Eventuais ecos de Pascoaes com a saudade pronunciada em catalão: enyorament (um enamoramento melancólico?).
3 comentários:
!!
:)
vou roubar-te os poemas (e provavelmente comprar o livro)
Maldade. Não roubar os poemas, mas ficar pelas probabilidades. :-)
é melhor é *
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