INVERNO
A
que horas começa o Inverno?
Tenho de me precaver atempadamente,
os meteorologistas avisam
que será um Inverno rigoroso.
A
que horas começará?
Tenho de arranjar um agasalho,
abastecer-me de provisões,
pegar num machado, partir lenha.
Mas
antes, preciso de algo mais:
um calendário, um relógio que me informe
a que horas começa o Inverno.
*
SEDE
Às
vezes penso que a vida
nasceu-me ao contrário.
Consulto o ortopedista
e fico a saber que sofro do coração,
vou ao cardiologista
e diagnosticam-me pés chatos,
coxeio até ao dentista
e arrancam-me a língua.
Quem
me desconheça
julgar-me-á emudecido,
mas a verdade é que fui barbaramente
tratado pelo dentista.
É
com os dentes que ferramos a língua,
mordemos os lábios,
roemos as unhas.
É com os dentes que redemoinhamos
a desesperança, o medo,
a tentação, a agonia.
Estou
calado porque levaram-me a língua,
mas tenho dentes que tremem
do horror calado
com que pauto os dias.
Espero
chegar a velho sem dentes
nem dentadura,
toda a minha boca só gengivas.
Ninguém precisa de dentes para matar a sede.
*
O
TEMPO QUE FALTA
Acordar
pesado sob manhãs de nevoeiro:
podia ser uma manhã como outra qualquer,
a sair de casa sem tomar pequeno-almoço,
o corpo ensaboado com desconfiança
porque na manhã anterior faltou-me gás,
fiquei murcho debaixo de uma água tão fria
que o único grau a pairar no ar
aqueceu-me as notas de crédito e de débito,
recolhas, devoluções, facturas, consignações
e uma hora extra mais sem parafusos na alegria.
Sujeito-me
aos estragos, «caminho pela humidade
luminosa», só, sem vislumbre de sentido
para esta vida roubada, os dias a crescerem
ao nosso lado, a crescerem tão alto que
nos sentimos formigas a olhar para os ombros
dos dias. São gigantescos e pisam-nos
e nós deixamos porque nos foi inculcada
a música das crostas que estalam,
estamos transformados em baratas
e dessa metamorfose fazemos assumida identidade.
Chega
o almoço aos bolsos vazios,
aqueles que circulam pela arena do vício
desenganam a ignorância com os olhos distraídos
nos monitores e nós sentimos mais uma vez
o vazio de que nos enchemos, escavamos argumentos
no peito para que nele brotem sentidos,
mas já nada no deserto, apenas nuvens de pó
e uma porta a bater, livros enterrados na humidade,
músicas adormecidas. O tempo que falta faz-nos falta.
*
Henrique
Manuel Bento Fialho, in “Em delírio há vinte anos”, coordenação de Luís Paulo
Meireles e Mário Galego, non nova sed nove, Abril de 2011, s/p.
Textos
e imagens de Alexandra Demenkova, Fabiano Donato Leite, Fernando Guerreiro, Henrique
Manuel Bento Fialho, Jaime Rocha, Jorge Velhote, José Carlos freitas, Miguel Martins,
Steve Remígio Delgado, Rui Almeida, Rui Tinoco, Sílvia C. Silva, Vítor Vicente,
Wellitania Oliveira.
Tenho de me precaver atempadamente,
os meteorologistas avisam
que será um Inverno rigoroso.
Tenho de arranjar um agasalho,
abastecer-me de provisões,
pegar num machado, partir lenha.
um calendário, um relógio que me informe
a que horas começa o Inverno.
nasceu-me ao contrário.
Consulto o ortopedista
e fico a saber que sofro do coração,
vou ao cardiologista
e diagnosticam-me pés chatos,
coxeio até ao dentista
e arrancam-me a língua.
julgar-me-á emudecido,
mas a verdade é que fui barbaramente
tratado pelo dentista.
mordemos os lábios,
roemos as unhas.
É com os dentes que redemoinhamos
a desesperança, o medo,
a tentação, a agonia.
mas tenho dentes que tremem
do horror calado
com que pauto os dias.
nem dentadura,
toda a minha boca só gengivas.
Ninguém precisa de dentes para matar a sede.
podia ser uma manhã como outra qualquer,
a sair de casa sem tomar pequeno-almoço,
o corpo ensaboado com desconfiança
porque na manhã anterior faltou-me gás,
fiquei murcho debaixo de uma água tão fria
que o único grau a pairar no ar
aqueceu-me as notas de crédito e de débito,
recolhas, devoluções, facturas, consignações
e uma hora extra mais sem parafusos na alegria.
luminosa», só, sem vislumbre de sentido
para esta vida roubada, os dias a crescerem
ao nosso lado, a crescerem tão alto que
nos sentimos formigas a olhar para os ombros
dos dias. São gigantescos e pisam-nos
e nós deixamos porque nos foi inculcada
a música das crostas que estalam,
estamos transformados em baratas
e dessa metamorfose fazemos assumida identidade.
aqueles que circulam pela arena do vício
desenganam a ignorância com os olhos distraídos
nos monitores e nós sentimos mais uma vez
o vazio de que nos enchemos, escavamos argumentos
no peito para que nele brotem sentidos,
mas já nada no deserto, apenas nuvens de pó
e uma porta a bater, livros enterrados na humidade,
músicas adormecidas. O tempo que falta faz-nos falta.

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