domingo, 3 de abril de 2011

O CORONEL CHABERT

Infelizmente, não é de hoje a associação dada como adquirida entre a riqueza material e a desonestidade. Podemos pensar que se trata de um preconceito carente de prova, revogável pelas putativas excepções que, como sabemos, mais não são do que confirmações da regra. A verdade é que tanto no Portugal de hoje como na França do século XIX não seria tarefa muito difícil encontrar exemplos, nas mais diversificadas latitudes, desta pesada herança cultural. Já Camões lamentava o desconcerto do mundo, chamando a atenção para a desagradável paisagem humana: «Os bons vi sempre passar / no mundo graves tormentos; e, para mais me espantar, / os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos». Como é óbvio, estas perspectivas maniqueístas da índole humana, que colocam de um lado os bons e do outro lado os maus, sem que nada de muito concreto seja dito quanto aos fundamentos das categorias, acarretam sempre vários perigos. Podem transformar-se em estereótipos de injusta perniciosidade, excluindo do matagal humano a riqueza de uma flora onde, conforme as situações, o mal se transforma em bem e o bem se revela danoso. Gente anódina não se conhece, muitos menos pura e angelical. O inferno é isto mesmo, confunde-nos os limites e armadilha-nos a rede para a qual mergulhamos cheios de confiança sem que sequer nos passe pela cabeça poder alguém ter sabotado os pilares das nossas convicções. Somos assim levados a pensar que quem está por baixo há-de sempre olhar com desconfiança quem está por cima e quem por cima está há-de sempre olhar para baixo com desprezo. Mas nem sempre esta regra se atesta. Situações há que, de tão inusitadas ou caricatas, podem misturar as coordenadas com que organizamos o mundo à nossa volta. Veja-se o caso de O Coronel Chabert, novela escrita por Honoré de Balzac (1799-1850) em 1832 (há um problema com as datas nesta edição da Assírio & Avim que faz Balzac ter falecido em 1890 e a novela ter sido escrita em 1882). Aníbal Fernandes, o tradutor português, diz que esta história «é mais ao fundo o drama do homem da guerra que uma cultura militar despreparou para as leis e os valores de um mundo de paz» (p. 20). Pode ser que ao fundo seja isso, mas também não deixa de ser aquilo que é à superfície. Chabert foi dado como morto na sequência de uma campanha militar. O equívoco, com a sua razão de ser, pode vir a ser desfeito anos mais tarde, quando Chabert procura um advogado com a intenção de recuperar a sua identidade e aquilo que perdeu para uma putativa viúva em segundas núpcias e mãe de duas crianças. Do mote se serve Balzac para descrever com repugnância os lugares de justiça, pintar com a cor da perfídia a natureza feminina e vergastar a sociedade no que ela tem de mais repugnante, isto é, a avidez material e a desonestidade a esta ligada. Mas se os lugares de justiça «são esgotos que não podem ser desentupidos», porque neles caem todos os dias os horrores da verdade que «os romancistas julgam inventar», a humanidade não é menos, independentemente das lantejoulas com que se disfarce, a lama onde se enterram os pés descalços dos miseráveis e os sapatos engraxados dos bem instalados. O famigerado realismo de Balzac tem a sua fonte numa perspectiva negra do ser humano, muito embora polvilhada de uma agudeza satírica que consegue em poucas páginas desmascarar num só homem as mais contrastantes atitudes. Este coronel Chabert, morto ressuscitado, pode assim concluir: «Fui enterrado debaixo de mortos mas estou agora enterrado debaixo dos vivos, dos actos, dos factos, da sociedade inteira que quer voltar a pôr-me debaixo da terra!» (p. 53) De facto, um homem morto é sempre mais útil e conveniente do que um homem vivo. Chabert correu o mundo (Egipto, Síria, Espanha, Rússia, Holanda, Alemanha, Itália, Dalmácia, Inglaterra, China, Tartária, Sibéria, só lhe faltam as Índias e a América), mas é na Paris em torno da qual o mundo então girava que ele terá de aprender a viver com a real natureza dos homens. O dinheiro guia-lhes os passos, a Justiça desbrava-lhes o caminho. Esta é como que uma catana não ao serviço do bem ou da verdade, sejam eles o que forem, mas antes ao serviço de quem dela se possa e queira servir para fazer valer os seus mais criticáveis interesses. Tudo isto fica muito claro quando, no termo da segunda das três partes da novela, Chabert vacila perante a argúcia da condessa Ferraud (sua suposta viúva). Veja-se como num só parágrafo tudo se elucida com a utilização de meia dúzia de expressões/palavras: «meigos cuidados», «amabilidade constante», «espalhar encantos», «graças de coração ou de espírito», «enternecê-lo», «manobras». Tudo o que parecia humano se revela desprezível porque, afinal, não passava de engodo, armadilha e conluio com a intenção de atirar o coronel zombie para um manicómio. Restou-lhe o desprezo: «Não pode saber até onde chega o meu desprezo por esta vida exterior a que a maior parte dos homens se apega. De repente fui atacado por uma doença, o nojo pela humanidade» (p. 129). Somos dois, caro coronel. Somos dois. Resta saber se iremos acabar de igual modo.

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