quinta-feira, 5 de maio de 2011

O DIREITO À PREGUIÇA

Por mais curta que seja, esta história carece de um certo enquadramento biográfico. Paul Lafargue (1842-1911) nasceu em Santiago de Cuba no seio de uma família onde se misturavam judeus com mulatos e índios com franceses republicanos. Inicialmente simpatizante de Proudhon, inclinou-se para as teorias marxistas. De resto, inclinou-se de tal modo que veio a casar com Laura Marx. Suicidaram-se ambos após uma vida de luta dedicada ao activismo político, deixando nas notas finais loas ao comunismo e votos de glória. O ímpeto panfletário de Lafargue ficou nobremente registado no best-seller intitulado O Direito à Preguiça. Esta edição da Teorema, com tradução de António José Massano, é a décima primeira (Março de 2011). À partida, este panfleto datado de 1880 pode passar por uma divagação utopista inspirada no hedonismo clássico. Mas à partida as coisas são sempre muito diferentes do que se constata serem à chegada. Escrito numa época em que os movimentos de protesto contra a exploração da classe operária ganhavam força e começavam a assumir formas de combate bastante violentas, este texto tem como principal alvo «a moral capitalista» entendida como «lastimável paródia da moral cristã». Portanto, trata-se de um panfleto com um propósito muito prático e actual: abrir a pestana dos assalariados, novo género de escravos alimentado pela sociedade capitalista e os seus dogmas do trabalho. O L’Égalité foi o primeiro albergue desta sátira escrita ao jeito de um manifesto e com uma lógica argumentativa imbatível. Primeiro desmascara-se o dogma desastroso da sociedade capitalista, estabelecendo uma cisão entre o culto do ócio na antiguidade e a degenerescência da “vida feliz”, como a entendiam Séneca ou Epicuro, incutida pelo cristianismo e pelo seu ódio à natureza selvagem. A censura dos prazeres, ditada pela religião da produtividade, devota do deus Progresso, transforma o homem num ser doente e desapaixonado. Lafargue cita como exemplo de um povo saudável os índios das tribos guerreiras do Brasil, que matam os doentes e os velhos por entenderem não valer a pena continuar vivo sem poder retirar prazer da vida. Esta dimensão hedonista, de matriz cínica, subentende uma dúvida fundamental: de que vale viver sem liberdade, escravo do trabalho, nem réstia de esperança numa vida feliz? Entenda-se que neste contexto a vida feliz não estabelece qualquer dicotomia entre os prazeres do corpo e os prazeres do espírito, patacoada introduzida pelo idealismo platónico e propagada pelo cristianismo. Estamos no domínio de um materialismo puro. Sem o corpo satisfeito, não há prazer do espírito que nos valha. E para estar satisfeito o corpo necessita de descanso, ócio, preguiça. As 12 horas de trabalho fabril a que estavam obrigados os operários de então impossibilitavam esse estado de graça, usurpando à vida o seu sentido e fazendo dos homens meras peças de uma mecânica aniquiladora. Como tal, Paul Lafargue defende que ninguém deveria trabalhar mais que três horas por dia. E desbrava o caminho: «Estas misérias individuais e sociais, por grandes e inumeráveis que sejam, por eternas que pareçam, desvanecer-se-ão como as hienas e os chacais à aproximação do leão, quando o proletariado disser: «Quero!» Mas para que tome consciência da sua força o proletariado tem de calcar aos pés os preconceitos da moral cristã, económica e livre-pensadora; tem de regressar aos seus instintos naturais, de proclamar os Direitos da Preguiça, mil e mil vezes mais nobres e sagrados do que os tísicos Direitos do Homem, cozinhados pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que se constranja a trabalhar apenas três horas por dia, a nada fazer e a andar em patuscadas o resto do dia e da noite» (p. 29). Mentes reaccionárias insurgir-se-ão contra tão nobres intentos questionando a sua exequibilidade. Afinal, como garantir o serviço da patuscada? Como garantir a produção do vinho a quem deseja deleitar-se bebendo-o? O problema reside na superprodução, na ganância desmesurada daqueles que ganham com o hipnotismo laboral a troco de uma capacidade de consumo que nos permite adquirir praticamente tudo privando-nos do mais precioso dos bens: tempo para usufruir daquilo que venhamos a adquirir. Com preocupações humanistas evidentes, estes argumentos mantêm na actualidade a pertinência indiscutível de um diagnóstico justo sobre as injustiças do mundo laboral. À luz dos conceitos hoje em vigor, poderão apenas valer como fonte de inspiração para uma luta pelo mais básico de todos os direitos: a preguiça, terrível pecado contra o qual temos vindo a assistir a uma recorrente e exacerbada condenação da vida. A única que temos, até prova em contrário.

5 comentários:

Mariana disse...

Apoiado!

Sandra R. disse...

alguns pecados conheci-os cedo. de muitas coisas sou preguiçosa, num deixar desleixadamente para amanhã apenas porque hoje já não faço mais nada. acho mesmo que este foi o primeiro. aprendi cedo o prazer do ócio. dos tempos "vazios" surgiam às vezes novas ideias que só por si proporcionavam o que deve ser o estado simples de felicidade. em economia politica lembro-me da surpresa da descoberta de uma corrente de seguidores de teorias hedonisticas, do ócio... um direito que é um pecado? um pecado cujo antídoto é mortal?

Amélia disse...

Pois...li há muitos anos o livro- e gostei- é a minha faceta (tendencialmente)um tanto anarco-libertária que também me fez gostar muito e rever-me um pouco no Ensaio sobre a servidão voluntária dos homens(La Boétie) e em Thoreau-A desobediência civil.

Amélia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
hmbf disse...

Viva a preguiça!!!!!!!