terça-feira, 23 de agosto de 2011

QUANDO VÓS CHEGAIS, NÓS MORREMOS

Quando, em 1989, me ofereceram O Papalagui (Edições Antígona), estava eu muito longe de imaginar a repercussão que os discursos do chefe de uma tribo nos mares do sul poderiam exercer sobre uma imberbe alma burguesa. Toda a gente conhece as palavras de Tuiavii de Tiavéa, o chefe polinésio a quem foi permitido viajar pela Europa observando os hábitos e costumes ocidentais. A forma como posteriormente nos descreveu aos seus concidadãos revela uma argúcia ímpar no que respeita a capacidades de observação. Esta é, porventura, a característica mais generalizável aos indígenas entretanto sumidos sob a treva dos sombreiros produzidos em massa. Talvez nada nos afaste mais desses povos ligados à terra por inerência do que a capacidade de observar em silêncio e sem quaisquer constrangimentos morais. A recolha levada a cabo pelo holandês Erich Scheurmann, traduzida para português pela poeta Luiza Neto Jorge, teve, pelo menos, o mérito de popularizar uma perspectiva crítica do modus vivendi capitalista/consumista que foi ganhando terreno no chamado mundo civilizado. Civilização, para os europeus que assaltaram as Américas, África e todos os demais territórios onde puderam impor a sua inesgotável ganância, saqueando e escravizando povos militarmente mais débeis e devastando territórios até então respeitados na sua essência, teve sempre um único significado: domínio sobre a terra e sobre todos os animais (classe problemática que não exclui seres bípedes e sem penas). A este domínio foi correspondendo uma inevitável negação da raiz selvagem que os índios da América do Norte, por exemplo, nunca quiseram renegar. No livro A Fala do Índio (Fenda Edições, tradução de Júlio Henriques), Teri C. McLuhan compilou vários discursos e fragmentos que testemunham, precisamente, essa devoção à Terra/Natureza, não apenas enquanto território, mas sobretudo como fonte e leito de uma vida que não reconhece a morte e, por isso, sabe manter-se em permanente estado indomesticável. Muito trabalho tiveram os missionários cristãos para tapar as carnes nuas e rapar as guedelhas fartas dos filhos do Sol. O nosso ódio à nudez, a nossa renúncia da matriz animal, a nossa vergonha imposta por um medo castrador e governador da consciência, advêm de uma domesticação sem a qual não teríamos chegado ao lindo estado a que chegámos, a este estado de peles pálidas e consciências ressentidas, cultura de assassinos e suicidas, quando não suicidados da sociedade, deveras empenhados no culto populista de papas homofóbicos, racistas, hipócritas e inimputáveis. A alma do índio está bem expressa nas palavras de Sharitarish, o chefe Pawnee, que não se deixou impressionar pelo exibicionismo dos colonos: «O Grande Espírito fez-nos a todos – fez a minha pele vermelha e a vossa branca; pôs-nos nesta terra e entendeu que deveríamos viver cada um de forma diferente. Criou brancos para cultivar a terra e alimentar-se de animais domésticos; mas a nós, peles vermelhas, criou-nos para deambular através das florestas selvagens e das planícies; para que nos alimentássemos de animais selvagens e vestíssemos as suas peles» (in A Alma do Índio, Padrões Culturais Editora). E embora nem todas as tribos índias encaixem no nomadismo advogado por Sharitarish, a verdade é que em todas elas encontramos a aceitação de uma condição selvagem como a mais benéfica, pura e divina. A estes povos chamou Colombo gente in Dios (em Deus), condição que os colonizadores brancos não souberam reconhecer por neles já não existir nada de divino. Nesta gente já só havia o que até hoje perdura como vírus aparentemente inexorável, isto é, um etnocentrismo dissimulado de ecumenismo que matou e mata impunemente pelas mãos sujas de zeladores convencidos de que Deus mora nas suas encíclicas e não na Terra calcada pelas solas dos sapatos Prada. O Deus parcial dos homens brancos − assim se lhe referiu o chefe Seattle num discurso memorável hoje conhecido como A Noite do Índio (Casa do Sul Editora, tradução de Joaquim Palma) − nunca foi o Deus universal dos povos indígenas, um Deus indistinto das suas forças vitais: o ar, a água, a terra, o fogo. Foi sempre um Deus demasiado benevolente para com gente avarenta tomada pela cobiça. Àqueles, como Smohala, que acusaram o lado pernicioso do trabalho, afirmando que «os homens que trabalham não têm acesso ao sonho, e a sabedoria é através dos sonhos que nos chega», o Deus dos brancos ofereceu o extermínio. Porque o Deus dos brancos pode ter nascido para libertar povos oprimidos, mas transformou-se rapidamente na mais exploradora das máquinas. E aí estão os homens pálidos, seus reverentes escravos, a dar vivas a papas que mais facilmente perdoam bispos pedófilos do que mulheres abortadeiras.

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