Sob a capa de caderno de apontamentos, as páginas desenvolvem-se a duas colunas. Do lado direito, um breve texto em prosa como que enraíza o desabrochar dos versos. A sustentá-los, então, uma perspectiva reflectida com apuro aforístico, no sentido filosófico do termo, que não é alheio à restante obra de Paulo da Costa Domingos. Se noutros livros esse sustento filosófico não era tão evidente, aqui expõe-se ombreando com a poesia. No fundo, duas formas de expressão para uma mesma raiva. O que se regista à margem não procura evidenciar, explicar, aclarar ou sequer justificar o poema-grito partido em estrofes de quatro versos. É um mesmo grito na génese da voz. A crítica da razão, não propriamente racional, envia-nos para as teorias de Paul Karl Feyerabend, o filósofo (epistemólogo) anarquista que um dia se despediu da razão num diálogo imaginário. É do Diálogo Sobre o Método que lembramos a seguinte passagem: «Alguns anos atrás, dirigia-me na direcção d euma parede, quando vi um tipo pouco recomendável avançar na minha direcção. «Quem será aquele vagabundo?» interroguei-me − depois descobri que a parede era na realidade um espelho e que eu me estava a olhar a mim próprio. Imediatamente o vagabundo se transformou num tipo de aspecto elegante e inteligente» (trad. António Guerreiro). Ora, na poesia de Paulo da Costa Domingos a parede não é necessariamente um espelho que nos relativiza o olhar. A parede é o muro contra o qual o olhar se despenha. E nesse muro projectam-se sombras que urge decifrar. Esta relação com o mundo gera um desconforto essencial à construção do poema, porque o poema não surge para embalar o desconforto ou para dormir mais aconchegadamente no regaço de um mundo hostil. Não, o poema surge como uma marreta pronta a estilhaçar o muro do homem actual, a quem o poeta chama homem-suicídio (na linha de Artaud) ou homem-sonífero. A segunda designação é especialmente interessante, pois releva a dimensão excitante desta poesia. Em vez de adormecer - arrebitar, acordar, despertar os sonâmbulos emparedados da urbe assassina. Trata-se, deste modo, de uma poesia imbuída de intenção, intenção essa que recusa estigmas num mundo pós-ideias, pós-ideais, imerso na ditadura cosumista onde o efémero impera e o humor aligeira a cultura a ponto de uma a absoluta e inconsequente insignificância. Talvez exista aqui uma nostalgia do significado, ou seja, uma espécie de vazio instaurado pela superficialidade que se procura combater indo às entranhas do problema. Mas o problema escava sobre si próprio, a “nostalgia do significado” (considerem as aspas) não reclama importância. O’Neill fez o bastante para que a importância fosse (de uma vez por todas e para sempre) erradicada da poesia, embora o bastante nunca seja suficiente. Está visto. O que a “nostalgia do significado” reclama é uma atitude perdida, esvaecida, submersa no e pelo oceano das dívidas pessoais, do sucesso, da fama, da eficácia. A “nostalgia do significado” reclama a utilidade do inútil, a liberdade acima de uma putrefacta escravidão dissimulada pelo culto do superficial. O mal-estar social é evidente, o retrato pintado evita equívocos: «Hordas despojadas da privacidade / a troco do holograma do acesso / a um nirvana de crédito, órfãos / em permanente estado de fome // à espera de acolhimento / num patrão. Inquisitorial, / qual mediador de seguros / comissionista: o jornalixo» (s/p). À tentação de classificar de política, ou mesmo de social, esta poesia, eu prefiro a deriva epistemológica de Feyerabend. É uma poesia de partir muros. Como é óbvio, não existe muita gente interessada neste tipo de averbamentos. Mas seja reconhecido, em abono da verdade, que ao averbamento sempre coube o lugar da des-ilusão. E como vociferava certo amigo do passado: antes desiludido com tesão do que iludido com moleza. Ficam os versos finais, à guisa de resumo: «Coragem. Simulacro por / simulacro, qualquer um pode / ter um brinquedo destes / para sair ao domingo. Só que // com menos motor, menos ideias. / Talvez por decreto d’óbito e / acordo da cristandade e dos outros / ela morra: a economia de mercado» (idem). Assim seja.
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
AVERBAMENTO
Sob a capa de caderno de apontamentos, as páginas desenvolvem-se a duas colunas. Do lado direito, um breve texto em prosa como que enraíza o desabrochar dos versos. A sustentá-los, então, uma perspectiva reflectida com apuro aforístico, no sentido filosófico do termo, que não é alheio à restante obra de Paulo da Costa Domingos. Se noutros livros esse sustento filosófico não era tão evidente, aqui expõe-se ombreando com a poesia. No fundo, duas formas de expressão para uma mesma raiva. O que se regista à margem não procura evidenciar, explicar, aclarar ou sequer justificar o poema-grito partido em estrofes de quatro versos. É um mesmo grito na génese da voz. A crítica da razão, não propriamente racional, envia-nos para as teorias de Paul Karl Feyerabend, o filósofo (epistemólogo) anarquista que um dia se despediu da razão num diálogo imaginário. É do Diálogo Sobre o Método que lembramos a seguinte passagem: «Alguns anos atrás, dirigia-me na direcção d euma parede, quando vi um tipo pouco recomendável avançar na minha direcção. «Quem será aquele vagabundo?» interroguei-me − depois descobri que a parede era na realidade um espelho e que eu me estava a olhar a mim próprio. Imediatamente o vagabundo se transformou num tipo de aspecto elegante e inteligente» (trad. António Guerreiro). Ora, na poesia de Paulo da Costa Domingos a parede não é necessariamente um espelho que nos relativiza o olhar. A parede é o muro contra o qual o olhar se despenha. E nesse muro projectam-se sombras que urge decifrar. Esta relação com o mundo gera um desconforto essencial à construção do poema, porque o poema não surge para embalar o desconforto ou para dormir mais aconchegadamente no regaço de um mundo hostil. Não, o poema surge como uma marreta pronta a estilhaçar o muro do homem actual, a quem o poeta chama homem-suicídio (na linha de Artaud) ou homem-sonífero. A segunda designação é especialmente interessante, pois releva a dimensão excitante desta poesia. Em vez de adormecer - arrebitar, acordar, despertar os sonâmbulos emparedados da urbe assassina. Trata-se, deste modo, de uma poesia imbuída de intenção, intenção essa que recusa estigmas num mundo pós-ideias, pós-ideais, imerso na ditadura cosumista onde o efémero impera e o humor aligeira a cultura a ponto de uma a absoluta e inconsequente insignificância. Talvez exista aqui uma nostalgia do significado, ou seja, uma espécie de vazio instaurado pela superficialidade que se procura combater indo às entranhas do problema. Mas o problema escava sobre si próprio, a “nostalgia do significado” (considerem as aspas) não reclama importância. O’Neill fez o bastante para que a importância fosse (de uma vez por todas e para sempre) erradicada da poesia, embora o bastante nunca seja suficiente. Está visto. O que a “nostalgia do significado” reclama é uma atitude perdida, esvaecida, submersa no e pelo oceano das dívidas pessoais, do sucesso, da fama, da eficácia. A “nostalgia do significado” reclama a utilidade do inútil, a liberdade acima de uma putrefacta escravidão dissimulada pelo culto do superficial. O mal-estar social é evidente, o retrato pintado evita equívocos: «Hordas despojadas da privacidade / a troco do holograma do acesso / a um nirvana de crédito, órfãos / em permanente estado de fome // à espera de acolhimento / num patrão. Inquisitorial, / qual mediador de seguros / comissionista: o jornalixo» (s/p). À tentação de classificar de política, ou mesmo de social, esta poesia, eu prefiro a deriva epistemológica de Feyerabend. É uma poesia de partir muros. Como é óbvio, não existe muita gente interessada neste tipo de averbamentos. Mas seja reconhecido, em abono da verdade, que ao averbamento sempre coube o lugar da des-ilusão. E como vociferava certo amigo do passado: antes desiludido com tesão do que iludido com moleza. Ficam os versos finais, à guisa de resumo: «Coragem. Simulacro por / simulacro, qualquer um pode / ter um brinquedo destes / para sair ao domingo. Só que // com menos motor, menos ideias. / Talvez por decreto d’óbito e / acordo da cristandade e dos outros / ela morra: a economia de mercado» (idem). Assim seja.
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1 comentário:
não te deu vontade de agir e escrever qualquer coisa, como que a continuar a escrita, nas linhas ainda deixadas em branco? é realmente um muito bom livro de poesia.
um abraço
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